Hamurabi

 

“Hamurabi” é palavra de origem árabe que significa abundância. Nomen est homem, esse adjetivo bem espelha a ventura do príncipe de origem acádica que, reinando de 1792 a 1750 a.C., transformou a modesta Babel em um império. Quando Abil-Sin morreu, seu filho Hamurabi herdou uma cidade-estado próspera, organizada e bem defendida, cuja existência e segurança, todavia, dependiam da aliança com três outras potências locais contemporâneas: Assur, Larsa e Echunna.

O Hamurabi cultivou cordiais relações diplomáticas com as cidades amigas e, internamente, empenhou-se em grandes obras civis, como a construção de canais. Porém, quando disputas dinásticas e territoriais provocaram desequilíbrio na região, o jovem rei habilmente negociou apoio e acabou por impor suas tropas sobre antigos aliados, submetendo-os, pela força ou pela estratégia, conforme a oportunidade.

Na obra “Dos sumérios a Babel”, em que conta detalhadamente a história das diversas civilizações mesopotâmicas, Federico Mella (s.d., p. 146) assim descreve o gênio político-administrativo de Hamurabi:

 

“Sua verdadeira obra-prima, que o tornou célebre e grande aos olhos dos pósteros, foi o longo e inteligente trabalho de unificação que ninguém tentara antes. Sob o seu cetro encontravam-se sumérios, acádicos, amoritas, cananeus, assírios, além das infinitas tribos do deserto e das montanhas. Quanto à sua própria figura de soberano, referiu-se ao mundo acádico e proclamou-se “Rei das Quatro Partes do Mundo”, mas, em conformidade com o modelo sumério, não se proclamou deus, aceitando somente o título de “Sol de Babel”.

Ocupou-se de tudo, e proveu a tudo: o Estado foi centralizado; em cada província é nomeado um governador que respondia diretamente perante o rei. As propriedades das terras pertenciam o Estado, que designava feudos para a aristocracia, a qual, em contrapartida, fornecia efetivos para o exército. Aos próprios soldados, Hammurabi distribuiu terras nos países vencidos, garantindo a fidelidade e a gratidão deles.

Os templos pagavam taxas tal como qualquer outro súdito. A população era dividida em classes sociais correspondendo (sic) aproximadamente aos termos de patrícios, burgueses, plebe e escravos.

Assim, criou um Estado, em oposição aos antigos grupos de cidades independentes. (…)”.

 

As ações e decisões de Hamurabi indicam que pretendia transcender o poder político local. Ele ideara sedimentar a civilização babilônica. Mella afirma que, para concretizar sua visão de nação, tratou de unificar a língua e a religião. Esse autor (s.d., p. 146) explica:

 

“(…) Era necessário antes de tudo unificar a língua; na Mesopotâmia se falava uma infinidade de dialetos semíticos. O sumério era exclusivamente a língua dos eruditos. Era preciso agir tal como o Manzoni que, no Promessi Sposi, elaborou um idioma válido para todos os italianos. E Hammurabi deu ordem aos sábios que inventassem o acádico-babilônio, que seria adotado em todo o império e se tornaria a língua diplomática daquela parte do mundo.

A unificação foi também operada no plano religioso. Não se tratou, bem-entendido, de impor nada a ninguém, dado que, até o advento do monoteísmo, vigia por toda parte a mais absoluta liberdade de culto. Tentou-se simplesmente pôr um pouco de ordem entre os milhares de deuses semíticos e sumérios que ocasionalmente ficavam a contradizer-se, ou, mais frequentemente, eram sempre os mesmos, mesmo aparecendo sob os mais variados nomes locais. (…)”.

 

Pari passu, Hamurabi agiu no plano prático do cotidiano dos súditos, investindo na uniformização do direito e, consequentemente, no fortalecimento de um sistema de justiça que lhe rendesse prestígio e controle. Uma prova desse empenho é a confecção de estelas em que registrou o conjunto de leis hoje conhecido como “Código Hamurabi”. A estela encontrada por arqueólogos franceses em 1902 é uma rocha basáltica negra, com formato cilíndrico, de 2,25 m de altura, em que estão insculpidos 282 enunciados de leis ditados pelo rei babilônico. Escrito com letra cuneiforme acádica, o texto distribui-se em 46 colunas e 3.600 linhas. É provável que várias estelas tenham sido confeccionadas e distribuídas nos limites do reino, de modo que as leis fossem anunciadas a todos que entrassem nos domínios babilônicos.

Peça do acervo do Museu do Louvre em Paris, a estela com inscrição do “Código de Hamurabi” foi encontrada, em 1902, em Susa, antiga capital do Elam, para onde fora levada pelos elamitas como troféu de guerra.

 

Do pouco que se sabe a respeito das instituições jurídicas da Antiguidade, tem relevância o papel do soberano como representante dos deuses e, nessa condição, pessoa mais indicada para administrar a justiça. A autoridade religiosa do rei conferia-lhe condições de exercer a função de legislador e até de julgador de certas contendas, sendo instância única ou de apelação. Isso, é evidente, não significa que ele atuasse sozinho. A existência de uma estrutura judiciária evidencia-se nos seguintes artigos do Código de Hamurabi.

 

“Art. 5º. Se um juiz julgou uma causa, proferiu uma sentença e exarou um documento selado e depois alterou o seu julgamento, comprovarão contra esse juiz a alteração feita e ele pagará até doze vezes a quantia que estava em questão. Além disso, fa-lo-ão levantar-se do seu trono de juiz na assembleia e não tornará a sentar-se com os Juízes em um processo.”

“Art. 127. Se um homem apontou o dedo contra uma sacerdotisa ou contra a esposa de outro e não comprovou, arrastá-lo-ão diante do juiz e raspar-lhe-ão a metade de seu cabelo.”

“Art. 129. Se a esposa de um homem for surpreendida dormindo com outro homem, eles os amarrarão e os jogarão na água. Se o esposo perdoa sua esposa, o rei também perdoará seu escravo.”

 

A análise de Fustel de Coulanges, em sua obra “A cidade antiga”, relativa à autoridade religiosa do rei e ao seu papel sacerdotal no exercício da justiça, aplica-se, por analogia, ao processo de unificação dos costumes e do direito na civilização babilônica, que congregou diversidade de povos e etnias, sob o ideal de um rei conquistador de origem local.

 

“Não devemos imaginar uma cidade, em seu nascimento, deliberando sobre o governo que vai adotar, buscando e discutindo as suas leis, combinando as suas instituições. Não foi assim que as leis foram elaboradas e os governos foram estabelecidos. As instituições políticas da cidade nasceram com a própria cidade, no mesmo dia que ela; cada membro da cidade as trazia dentro de si mesmo, pois estavam em germe nas crenças e na religião de cada homem.

A religião recomendava que o fogo sagrado tivesse sempre um sumo sacerdote. Não admitia que a autoridade sacerdotal fosse compartilhada. O fogo sagrado doméstico tinha um sumo sacerdote, que era o pai de família; o fogo sagrado da cúria tinha o seu curião ou fratriarca; cada tribo tinha também seu chefe religioso, a que os atenienses chamavam rei da tribo. A religião da cidade devia ter também o seu sacerdote supremo.

Esse sacerdote da lareira pública tinha o nome de rei. (…).”

 

Apesar da sensação de onipotência que a articulação entre poder material e poder metafísico do soberano tende a despertar, verifica-se que Hamurabi não criou sozinho um conjunto de leis; tampouco eram leis inéditas. O código insculpido na estela não é invenção exclusiva dele, até porque normas de comportamento em sociedades populosas e complexas — desde a etiqueta até o direito — são fruto de interações longevas que confluem para noções de moral coletivamente construídas sob a égide de um ente transcendente. Tais normas são escritas após processo de maturação e aceitação que sustente sua efetividade.

A referência à transcendência é explícita e reiterada na estela, com recursos de linguagem verbal e não verbal. Em sua parte superior, está ilustrada a cena da origem do código: Hamurabi, de pé, com as mãos postas em posição de oração, recebe instruções diretamente do deus Shamash — o trono em que este está assentado tem o formato da porta do templo. Em reforço, o prólogo do código constitui-se de relato feito pelo próprio rei acerca do recebimento da incumbência divina de administrar a justiça. O estilo poético do prólogo acentua as qualidades do incumbente e a magnitude de suas façanhas:

 

“Quando o alto Anu, rei de Anunaki e Bel, Senhor da Terra e dos Céus, determinador dos destinos do mundo, entregou o governo de toda a humanidade a Marduk; quando foi pronunciado o alto nome da Babilônia, quando ele a fez famosa no mundo e nela estabeleceu um duradouro reino, cujos alicerces tinham a firmeza do céu e da terra, por esse tempo Anu e Bel me chamaram, a mim, Hammurabi, o excelso príncipe, o adorador dos Deuses, para implantar a justiça na terra, para destruir os maus e o mal, para prevenir a opressão do fraco pelo forte, para iluminar o mundo e propiciar o bem-estar do povo. Hammurabi, governador escolhido por Bel, sou eu. Eu, o que trouxe a abundância à terra; o que fez obra completa para Nippur e Burilu; o que deu vida à cidade de Uruk; supriu água com abundância aos seus habitantes; o que tornou bela a cidade de Brasippa; o que enceleirou grãos para a poderosa Urash; o que ajudou o povo em tempo de necessidade; o que estabeleceu a segurança na Babilônia; o governador do povo, o servo cujos feitos são agradáveis a Anu”.

 

Após a enunciação das normas, há um fecho no discurso, que reforça os méritos de Hamurabi e sua disposição de assentar, por meio da justiça, as bases da civilização babilônica:

 

“As justas leis que Hamurabi, o sábio rei, estabeleceu e com as quais deu base estável ao seu governo: — Eu sou o governador guardião, em meu seio trago o povo das terras de Sumer e Acad. Em minha sabedoria eu os refreio para que o forte não oprima o fraco e para que seja feita a justiça à viúva e ao órfão. Que cada homem oprimido compareça diante de mim, como rei que sou da justiça. Deixai-o ler a inscrição do meu monumento. Deixai-o atentar às minhas ponderadas palavras. E possa o meu monumento iluminá-lo quanto à causa que traz, e possa ele compreender o seu caso. Possa ele folgar o coração, exclamando: Hamurabi é, na verdade, como um pai para seu povo, estabeleceu a prosperidade para sempre e deu um governo pura à terra.

Nos dias vindouros por todo tempo futuro, possa o rei que estiver no trono observar as palavras de justiça que eu tracei em meu monumento”.

 

A última frase da estela deixa claro que a unificação idiomática, religiosa e jurídica promovida por Hamurabi destinava-se a perpetuar um ideal de civilização, e não apenas o nome do governante. Em grande parte de seus intentos, o rei obteve êxito: o idioma acádico-babilônio estabeleceu-se como língua da diplomacia; a Babilônia destacou-se por suas artes (literatura, escultura e arquitetura, principalmente); a cidade tornou-se poderosa e influente, mas sem pretensões imperialistas; as normas legais foram referendadas e adotadas posteriormente, até fora da Mesopotâmia, por exemplo, pelos hebreus, que, séculos mais tarde, aplicariam sistematicamente a “Lei de Talião”.

Os últimos oito anos de vida e de governo de Hamurabi foram pacíficos e marcados por esforços de aperfeiçoamento da organização do estado. Essa disposição final parece coerente com compromisso declarado pelo rei para com a grandeza da Babilônia, a qual se assentava nos desígnios da divindade protetora da cidade de Babel.

 

🎬 Assista a vídeo com descrição dos elementos da “Estela do código de Hamurabi”.

 

🔍 Leia tradução do “Código de Hamurabi” na íntegra.

 

BIBLIOGRAFIA

 

COLARES, Virgínia.  A Estela do Código de Hammurabi: uma leitura semiótica In: Universidade Católica de Pernambuco. Revista Symposium. Número Especial. Ano 3 (julho-99). p. 48-54. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/2671/2671.PDF. Acesso em: 09 jun. 2023.

FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. — Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martin Claret, 2009.

HAMURABI. Código de Hamurabi; Código de Manu; Leis das XII Tábuas. 3. ed. — Série Clássicos Edipro. São Paulo: Edipro, 2011.

HISTÓRIA DO MUNDO. Código de Hamurabi. Disponível em: https://www.historiadomundo.com.br/babilonia/codigos-penais-hamurabi.htm. Acesso em: 09 jun. 2023.

MELLA, Federico A. Arborio. Dos sumérios a Babel: Mesopotâmia – história, civilização e cultura. — Tradução de Norberto de Paula Lima. s.l.: Hemus, s.d.

SMARTHISTORY. A Estela do Código de Leis do Rei Hamurabi. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JO9YxZYd0qY. Acesso em: 10 jun. 2023.