Monteiro Lobato e o pensamento mágico nos tribunais

O raciocínio das crianças pequenas funda-se no pensamento mágico, por sua absoluta incapacidade de compreender a realidade, condição que se denomina vulgarmente ingenuidade ou inocência. Nessa fase do desenvolvimento, elas acreditam que se escondem ao tapar os próprios olhos e que uma pessoa falecida transforma-se em estrelinha, por exemplo. Nesse estágio do desenvolvimento físico, pisíquico e cogntivivo, realmente conversam com animais e objetos; abraçam bonecas para se protegerem do bicho papão; e contam até três para coisas magníficas acontecerem. É o pensamento mágico que dá existência a fadas e unicórnios, prevenindo também as crianças de interagirem com estranhos, que podem ser ardilosos como o lobo mau da Chapeuzinho Vermelho. Dos contos de fadas aos super-heróis, a literatura é absorvida como fonte de deslumbramento e de aprendizado moral.

O crescimento físico e o amadurecimento psicocognitivo levam ao progressivo abandono do pensamento mágico, com consequente percepção da mecânica entre causa e consequência bem como aquisição de estruturas lógicas de raciocínio. Assim, quando, ao cursar o ensino fundamental, o infante aprendiz é introduzindo no estudo da literatura, o professor precisa orientá-lo na calibragem entre realidade e ficção por meio de duas chaves básicas de leitura: (1) não se confunde autor com narrador e (2) é preciso suspender a descrença para interpretar uma obra de ficção.

A distinção entre autor e narrador é essencial para que o jovem leitor perceba o caráter ficcional de uma obra literária, compreendendo que mesmo seus elementos de referência ao mundo material são informados para permitir a construção de um universo imaginário. Tal universo é descrito por uma voz também imaginada, conhecedora de recônditos inexistentes e reveladora de mistérios fabricados. Dessa forma, ainda que o foco narrativo seja de 1ª pessoa, a voz que conta a história não corresponde à de um ser humano com existência material e jurídica. É apenas a expressão do fluxo de pensamento de um ser tão ficcional quanto as personagens da narrativa. É nessa pauta que o estudante aprenderá que Bentinho, o Dom Casmurro, não é Machado de Assis; assim como o narrador de O guarani não é alguém que viveu no interior do Rio de Janeiro setecentista, a bisbilhotar a vida de Peri e Ceci.

Em perspectiva correlata, o segundo ensinamento básico é apresentado para que o jovem leitor compreenda a importância de configurar mentalmente o universo ficcional conforme tenha sido proposto pelo narrador, considerando que o ambiente é tão essencial para a trama quanto as ações das personagens. Se questionar a vizinhança de uma ilha com pequeninos a outra com gigantes, não poderá interpretar as viagens de Gulliver; se pretender passar o pó de pirlimpimpim pelo espectômetro de massa, não fruirá as aventuras da turma do Sítio do Pica-Pau Amarelo. O leitor deve imergir no mundo ficcional idealizado pelo autor e verbalizado pelo narrador para extrair a mensagem universal e atemporal que a literatura veicula.

Sendo a dicotomia autor-narrador e a suspensão da descrença mecanismos interpretativos ensinados recursivamente desde o ensino fundamental, é assustador que advogados e julgadores os desconheçam e, pior, despendam tempo e dinheiro público em debates afetos à teoria literária mais rasteira. A imputação de racismo a Monteiro Lobato e as tentativas de censura a suas obras por meios judiciais são iniciativas que só podem ter partido de pessoas semialfabetizadas, cegas de ideologia ou com indesculpável má-fé ― provavelmente, tudo isso ao mesmo tempo.

Arrasta-se desde 2011 uma contenda proposta pelo Instituto da Advocacia Racial e Ambiental (Iara) e pelo técnico em gestão educacional Antônio Gomes da Costa Neto, que impetraram mandado de segurança (MS 30.952-DF), visando a impedir que Caçadas de Pedrinho fosse distribuído pelo Ministério da Educação (MEC) às escolas públicas ― subsidiariamente, requereram capacitação especial aos professores e produção nota explicativa com orientação sobre questões “étnico-raciais” para acompanhar obrigatoriamente os exemplares.

A controvérsia originou-se na seara administrativa em 2010, quando o Conselho Nacional de Educação (CNE) cancelou a distribuição da obra, classificando-a como racista, devido a passagens como: “É guerra e das boas. Não vai escapar ninguém ― nem Tia Nastácia, que tem carne preta” e “Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma macaca de carvão”. O ato foi revisto com base no Parecer CNE/CEB n. 6/2011, resultando em expedição de nota técnica com orientações ao professor acerca do contexto histórico em que escrita a obra. Porém, tal providência, que, por si só, avilta a inteligência e a autonomia do professor, não satisfez os autointitulados defensores “dos direitos da população afrobrasileira”, que pretenderam precipuamente restabelecer o Parecer CNE/CEB nº 15/2010 pela via judicial.

Ao longo dos quase 10 anos de judicialização, as principais movimentações processuais foram as seguintes:

  • nov. 2011 – protocolo de mandado de segurança identificado com número 30.952-DF e distribuído ao Ministro Joaquim Barbosa, que se declarou suspeito, de modo que, em novo sorteio, foram os autos à relatoria do Ministro Luiz Fux;
  • set. 2012 – realização de audiência de conciliação presidida por Ministro Fux, de que participaram representantes do MEC, da Advocacia-Geral da União (AGU) e da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, sem que houvesse acordo;
  • out. 2012 – deferimento pelo Ministro Fux do ingresso de herdeiros de Lobato como assistentes;
  • dez. 2014 – negativa de seguimento, em decisão monocrática da lavra do ministro relator, ao mandado de segurança, por falta de legitimidade, sob o argumento de que o ato cuja revogação se pleiteou emanara de Ministro de Estado, e não do Presidente da República;
  • fev. 2015 – interposição de agravo regimental;
  • fev. 2017 – retirada de pauta do agravo regimental;
  • maio 2020 – determinação de inclusão pelo Ministro Dias Toffoli dos agravos em pauta, sendo resultado do julgamento colegiado a declaração de incompetência do STF;
  • jun. 2020 – oposição de embargos de declaração;
  • out. 2020 – acolhimento dos embargos declaratórios para determinar remessa dos autos ao STJ;
  • nov. 2020 – oposição de novos embargos de declaração;
  • fev. 2021 – rejeição dos embargos de declaração;
  • mar. 2021 – baixa dos autos.

Após o trânsito em julgado dos embargos de declaração e a baixa dos autos, encerrou-se a jurisdição do STF, o que não significa o fim da contenda, haja vista que houve determinação de envio dos autos ao STJ, tribunal a que cabe julgamento de atos de ministros de Estado. Além disso, como o Iara acionou o Supremo também para impedir a criação do Prêmio Monteiro Lobato de Literatura em 2021, o debate vai longe, mesmo que com escassa razão. Justamente por isso, é relevante investigar como e por que obra e seu autor foram parar no banco dos réus.

Para qualquer pessoa minimamente letrada, mesmo aquela que não tenha lido a obra em questão, a alegação soa despropositada, porque construída com base em enunciados ficcionais e tomados isoladamente, ao passo que a interpretação da obra literária pressupõe análise conjunta de recurso expressivos. Os impetrantes do mandado de segurança parecem confundir obra (ficção) com autor (pessoa) de maneira vil, até porque não pode Lobato, imitando Flaubert, declarar que “Tia Nastácia c’est moi!”.

Para os leitores da obra, os questionamentos excedem-se na idiotia, haja vista não haver materialidade que produza a impressão de desmerecimento da personagem em vista de sua “raça”. Observa-se que muitos dos trechos objeto de polêmica são declarações de Emília, personagem que, não bastasse ser caracterizada pela arrogância, frequentemente se vê desmentida na trama, especialmente porque a sabedoria de Tia Nastácia é posta em relevo em diversos trechos.

 

🔎 Confira ao final desta página a transcrição dos trechos da obra “Caçadas de Pedrinho” em que Tia Nastácia aparece ou é mencionada. Avalie, por si mesmo, os atos de fala, os efeitos de sentido e a intencionalidade do autor, analisando o texto original.

 

Da análise do texto integral não se extrai motivo para escândalo e processo. O trecho mais áspero é provavelmente o seguinte, em que Emília exige reconhecimento por ter salvado Tia Nastácia das garras das onças.

 

“A boneca fez um muxoxo de pouco-caso. Depois, voltando-se para Tia Nastácia:

― E você, pretura?

Tia Nastácia não pôde responder. O susto por que passara fora tanto que havia perdido a voz. Foi preciso darem-lhe a beber uma caneca d’água. Só então pôde abrir a boca e dizer:

― Você me salvou a vida, Emília, e não há o que pague semelhante coisa. Dou tudo quanto me pedir.

― Quero aquele pito de barro em que você pita ― respondeu a boneca.”

 

Em geral, a velha e negra cozinheira do Sítio do Pica-pau Amarelo é tratada com respeito por todos, inclusive pelas crianças que buscam protegê-la do mesmo modo que protegem Dona Benta, conforme se percebe nos fragmentos a seguir  destacados.

 

“Nossas vidas correm perigo, bem como as vidas de vovó e Tia Nastácia. 

(…)

― Mas isto não tem propósito, Pedrinho! ― ralhou Dona Benta. ― Vocês põem-me doida. Onças e logo cin-qüen-ta!… Como irei arranjar-me aqui embaixo, sozinha com Tia Nastácia?

― O remédio, vovó, é a senhora e Tia Nastácia meterem-se em pernas de pau também. Olhe, as suas já estão ali prontinhas, feitas sob medida ― e as de Tia Nastácia são aquelas acolá…

(…)

― Serve ― disse Pedrinho, que dirigia a aprendizagem. ― Já dá para escapar de onça. Tratemos agora de Tia Nastácia.

Aí é que foi a dificuldade. A pobre negra era ainda mais desajeitada do que Rabicó e Dona Benta somados. Quando depois de inúmeras tentativas, ia se tenteando sobre as pernas de pau, perdeu o equilíbrio e veio aos chão, num berro. Felizmente caiu sobre um varal de roupa e não se machucou.”

 

Não havendo episódios de destrato pelas personagens ou pronunciamentos ofensivos por parte do narrador, parece que os ativistas raciais se ressentem de Tia Nastácia ser descrita como “negra” ou “preta”. Talvez pretendam o mero apagamento dessa característica, como se a evocação da cor da pele gerasse constrangimento por si mesmo. É certo que tal tratamento arrepia os brios apenas dos afroafetivos de última geração, sendo ainda mais certo que, quando enunciado por aliados ideológicos, os adjetivos não geram  nem estranheza nem perturbação.

 

Disponível em: https://www.letras.mus.br/amilcar-e-chocolate/162677/. Acesso em:23 nov. 2021.

 

 

Na discussão racial em torno de Lobato e sua obra não importam argumentos acadêmicos, teoria literária nem raciocínios lógico-interpretativos. Basta o aparente engajamento em “questões étnico-sociais” para que o Poder Judiciário se lhe dedique atenção e energia. O simples fato de permitir a duração de tal contenda evidencia que, além de editor do Brasil, o STF presta-se ao papel de crítico literário, esquecendo-se de que o valor estético e a repercussão moral de uma obra artística interessam à cultura, e não às instituições judiciárias. A literatura cinge-se às formas de perceber a realidade com base em irrealidades que, de tão belas, surpreendentes, comoventes ou impactantes, descortinam verdades universais e atemporais. Além disso, o preconceito racial não deixará de existir se a obra for proibida, descartada ou mutilada: o menor prejuízo decorrente dessas atitudes seria a perda do testemunho estético que ela representa.

É lamentável que os proponentes do mandado de segurança não tenham lido a obra contra a qual se insurgem. Ao final dela, teriam encontrado belíssima lição de Direito dada por Emília ao advogado que pretendia retomar o rinoceronte e devolvê-lo ao circo de onde fugira. A bonequinha de pano exige comprovação da propriedade do animal, tendo em vista que as provas são essenciais a quem pleiteie direitos.

 

 

Trecho do capítulo XII (Rinoceronte familiar)  de Caçadas de Pedrinho  

“Os homens pararam na porteira e pediram licença para entrar. Entraram.

Apearam-se. Dirigiram-se para a varanda.

― Desejamos falar com a dona da casa ― disseram. Dona Benta adiantou-se.

― Sou eu a dona da casa. Que é que Vossas Senhorias desejam?

Um dos homens era alemão. O outro, brasileiro. Foi este quem falou.

― Minha senhora ― disse ele ―, quero apresentar a Vossa Excelência o Senhor Fritz Müller, proprietário do circo de cavalinhos que está no Rio de Janeiro. O Senhor Müller é dono dum rinoceronte que fugiu de lá faz uns meses. Depois de longas pesquisas descobriu que o animal estava escondido aqui e veio comigo reclamá-lo. Sou o seu advogado.

O rinoceronte reconheceu o Senhor Müller e pendurou o focinho, muito triste, já sem vontade de brincar.

― Que é que há? ― perguntou-lhe a boneca, ao ouvido.

― Aquele homem louro é o meu dono ― respondeu o paquiderme ― e veio buscar-me. Estou triste porque gosto muito mais daqui do que do circo…

Emília abespinhou-se toda, lançando um olhar terrível para os dois intrusos.

Refletiu uns instantes e depois disse ao animalão:

― Não se aborreça. Darei um jeito desses piratas fugirem daqui ainda mais depressa que os caçadores. ― disse e desceu, dirigindo-se para a varanda, escutando a conversa dos homens com a velha.

― Pois não haja dúvida ― dizia Dona Benta. ― Se o animal é seu, pode levá-lo, apesar de que está muito acostumado aqui e não nos incomoda em nada.

― Está bem ― disse o alemão. ― Vou levá-lo já.

Ao ouvir tais palavras Emília não se conteve. Pulou de trás da cadeira, plantou-se diante do homem, de mãozinha na cintura, e disse:

― A coisa não vai assim, meu caro senhor! Não basta ir dizendo que o rinoceronte é seu. Tem que provar que é seu, sabe?

O alemão ficou espantadíssimo daquele prodígio: uma bonequinha falando, e falando daquele jeito, com tal arrogância.

― Quem é esta “senhorita”? ― perguntou ele a Dona Benta.

― Pois é a Emília, Marquesa de Rabicó, nunca ouviu falar dela? Foi quem descobriu o rinoceronte no capoeirão dos Taquaruçus. Depois o vendeu a Pedrinho. Depois o amansou e agora passa o dia a brincar com ele.

O alemão estava cada vez mais assombrado. Apesar de ser homem vivido, e de ter corrido o mundo inteiro com seu circo, jamais observara fenômeno igual: uma bonequinha tão pernóstica. Quis continuar a falar e não pôde. Estava engasgado. Quem falou dali por diante foi o seu companheiro.

― Sim, sim, minha senhorinha ― disse este ―, o rinoceronte pertence aqui ao meu amigo Müller, que o vem reclamar. Vejo que a senhorinha como os outros meninos já estão acostumados com o paquiderme. Infelizmente somos obrigados a levá-lo para o circo.

Emília empertigou-se mais ainda.

― Vamos por partes ― disse ela. ― Antes de mais nada, quero que o senhor doutor me prove que ali o Senhor Müller é mesmo o dono deste rinoceronte. Exijo provas, sabe? Eu não uso anel de advogado no dedo, mas acho que em direito o que vale são as provas.

Foi a vez de o advogado abrir a boca, de espanto. A tal bonequinha sabia discutir como um perfeito rábula.

― Toda gente deste país sabe que o rinoceronte pertence aos Senhor Müller ― disse ele. Os jornais deram mil notícias a respeito de sua fuga e da busca que os homens do detetive X B2 andaram fazendo pelo Brasil inteiro. É fato de domínio público.

― Perfeitamente ― replicou Emília. Não nego que esse cara-de-cavalo-melado…

― Emília! ― repreendeu Dona Benta. ― Mais modos, hem?…

― … seja dono dum rinoceronte. Mas quero que prove que o rinoceronte dele é este, está entendendo?

O advogado deu uma risadinha amarela.

― Muito fácil provar, bonequinha. No Brasil não há rinocerontes. O Senhor Müller foi o primeiro homem que trouxe um para cá. Esse um fugiu. Em seguida aparece este rinoceronte por aqui. Logo, o presente é o mesmo rinoceronte do referido Senhor Müller.

― Isso nunca foi prova, nem aqui nem na casa do diabo ― contestou Emília. ― Quero prova de verdade. Alguma marca, algum sinal de nascença…

― A marca é aquele chifre único que ele tem na testa ― disse o advogado, piscando o olho, como se Emília não soubesse que todos os rinocerontes daquela espécie possuem um chifre só.

Emília não respondeu. Achou um grande desaforo querer aquele idiota fazê-la de boba. Em vez de responder, disse apenas:

― Espere aí.

O advogado esperou, com um sorriso nos lábios, certo de que a tinha vencido na argumentação. Enquanto esperava, ia trocando olhares velhacos com o Senhor Müller.

Emília foi mexer nos guardados de Pedrinho e trouxe uma pitada do pó de pirlimpimpim num pires.

― Vamos resolver esta questão dum outro modo ― disse ela, ao voltar. ― Tenho aqui este tabaco que vou dividir em duas porções. O senhor toma uma pitada e ali o “cara-melada…”

― Emília!… ― repreendeu de novo Dona Benta.

― … toma outra. Se não espirrarem, é que o rinoceronte é o mesmo que andam procurando.

O advogado e o alemão acharam muita graça naquilo e, sem desconfiança nenhuma, resolveram tomar a pitada de pó de pirlimpimpim, certos de que não espirrariam. Era dose pequena demais para fazer espirrar dois homões como eles, acostumados ao fumo morte. Tomaram a pitada, sorridentes e… fiunnn! ― ninguém nunca soube onde foram parar! Sumiram-se no espaço…”

 

Apenas esse excerto já demonstra a qualidade da obra de Monteiro Lobato, que visava conduzir crianças à maturidade intelectual de maneira lúdica; bem ao contrário dos autointitulados defensores “dos direitos da população afrobrasileira”, que, recorrendo ao pensamento mágico, querem maquiar a realidade e enclausurar a todos na infantilidade eterna. Lobato abandonou a produção de contos para dedicar-se à literatura infantil, convicto de que educar crianças por meio do imaginário levaria a uma sociedade melhor. Se em sua obra há conteúdo moralizante, há mais ainda histórias que divertem e suscitam reflexão. Certamente, não imaginou o controverso escritor que uma gente mal-intencionada e com baixa autoestima tentaria ― com a ajuda de seus herdeiros até ― anular seu legado literário e diminuir seus méritos artísticos, valendo-se de falácias e gritaria. Compreende-se que advogados de instituições ideológicas ajam assim, mas era de se esperar que os magistrados não pretendessem se valer do pó de juris-pirlimpimpim para legitimar a estultícia.

 

QUINHO. Disponível em: https://www.bocamaldita.com/monteiro-lobato-politicamente-correto-por-quinho/. Acesso em: 07 jul. 2023.

 


REFERÊNCIAS

ALVES FILHO, Aluizio. O racismo em Monteiro Lobato, segundo leituras de afogadilho. In: Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica Rio de Janeiro: vol. 8, no .2, maio-agosto, 2016, p. 355-407. Disponível em: https://www.historia.uff.br/revistapassagens/artigos/v8n2a82016.pdf. Acesso em: 19 nov. 2021.

GODOY, Arnaldo Sampaio de Morais. Monteiro Lobato no banco dos réus: o tema da judicialização das “Caçadas de Pedrinho”. ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura v. 2, n. 1, janeiro-junho 2016 © 2016 by RDL – doi: 10.21119/anamps.21.113-121. Disponível em: https://rdl.org.br/seer/index.php/anamps/article/download/218/pdf. Acesso em: 19 nov. 2021.

LOBATO, Monteiro. Caçadas de Pedrinho. [Versão e-book]

 

Páginas consultadas

📌 MIGALHAS. Questão racial em obra de Monteiro Lobato volta a ser discutida pelo STF. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/326485/questao-racial-em-obra-de-monteiro-lobato-volta-a-ser-discutida-pelo-stf. Acesso em: 18 nov. 2021.

📌VEJA. Obras de Monteiro Lobato passam por atualização após acusações de racismo. Disponível em: https://veja.abril.com.br/cultura/obras-de-monteiro-lobato-passam-por-atualizacao-apos-acusacoes-de-racismo/. Acesso em: 19 nov. 2021.

📃 Íntegra da representação ao STF sobre a obra “Negrinha”.

📌DMC. A perseguição jurídica a Monteiro Lobato. Disponível em: diariodocentrodomundo.com.br/perseguicao-monteiro-lobato/. Acesso em: 19 nov. 2021.


 ANEXO

 

Excertos de “Caçadas de Pedrinho” em que há referências a Tia Nastácia

Para que o leitor desta postagem verifique por si mesmo se há tratamento preconceituoso à Tia Nastácia, transcrevem-se a seguir segmentos da obra Caçadas de Pedrinho em que há referência a essa personagem.

Foi consultada a obra em sua versão original, isto é, sem as modificações “politicamente corretas” realizadas pelos herdeiros de Lobato.

  • “Vovó e Tia Nastácia são gente grande e, no entanto, correm até de barata.”
  • “― Bem sei que você é valente como um galo garnisé, mas olhe que onça é onça. Com um tapa derruba qualquer caçador, diz Tia Nastácia.”
  • “Duas horas depois avistaram a casa, e viram Dona Benta e Tia Nastácia, muito aflitas, procurando-os pelo pomar. Pedrinho pôs na boca dois dedos e desferiu um célebre assobio que só ele sabia dar. As velhas voltaram-se na direção do som e Tia Nastácia, que tinha melhor vista, enxergou-os de longe.”
  • “Mais corajosa, a negra aproximou-se, viu que era onça mesmo e: (…).”
  • “― Não diga nada a vovó, nem a Tia Nastácia, pois são capazes de morrer de medo.”
  • “É guerra e das boas. Não vai escapar ninguém ― nem Tia Nastácia, que tem carne preta. As onças estão preparando as goelas para devorar todos os bípedes do sítio, exceto os de pena.”
  • “Nossas vidas correm perigo, bem como as vidas de vovó e Tia Nastácia.”
  • “Disse e ergueu-se, correndo para a margem do ribeirão, onde na véspera Tia Nastácia havia escondido qualquer coisa.”
  • “― Foi Antônio Carapina que nos mandou de presente ontem à noite. Tia Nastácia recebeu o cacho e veio escondê-lo aqui para que não acontecesse como da outra vez, que sujamos de cascas a varanda.”
  • “Atraída pelos seus gritos [de Rabicó], Tia Nastácia apareceu na porta da cozinha para ver o que era ― e quase desmaiou de susto vendo o bandinho lá em cima, perneando pernilongamente pelo terreiro.”
  • “― Corra, Sinhá! ― gritou para dentro. Venha ver o “felômeno” que aconteceu com a criançada. Está tudo pernilongando.”
  • “Não houve remédio senão explicar-lhe tudo, mesmo porque Dona Benta e Tia Nastácia tinham também de colocar-se sobre tais pernas quando as onças chegassem.”
  • “As duas pobres velhas ficaram na maior aflição do mundo, como era natural. Com semelhantes travessuras, o terrível bandinho acabaria dando cabo delas, não havia dúvida. Tia Nastácia, de olhos arregalados do tamanho de xícaras de chá, até perdeu a fala. Limitava-se a fazer pelo-sinais, um em cima do outro.”
  • “― Mas isto não tem propósito, Pedrinho! ― ralhou Dona Benta. ― Vocês põem-me doida. Onças e logo cin-qüen-ta!… Como irei arranjar-me aqui embaixo, sozinha com Tia Nastácia?”
  • “― O remédio, vovó, é a senhora e Tia Nastácia meterem-se em pernas de pau também. Olhe, as suas já estão ali prontinhas, feitas sob medida ― e as de Tia Nastácia são aquelas acolá…”
  • A aflição das duas velhas cresceu ainda alguns pontos. O medo de serem comidas pelas onças se somou ao medo de caírem de cima de tão cumpridas pernas. Mas o que fazer?”
  • “― Serve ― disse Pedrinho, que dirigia a aprendizagem. ― Já dá para escapar de onça. Tratemos agora de Tia Nastácia.”
  • “Aí é que foi a dificuldade. A pobre negra era ainda mais desajeitada do que Rabicó e Dona Benta somados. Quando depois de inúmeras tentativas, ia se tenteando sobre as pernas de pau, perdeu o equilíbrio e veio aos chão, num berro. Felizmente caiu sobre um varal de roupa e não se machucou.”
  • “― Não trepo mais nesses andaimes ― exclamou ela, ainda enganchada no varal. Prefiro que as onças me comam viva. Figa, rabudo!…”
  • “Mas isso de preferir que as onças nos comam vivos é conversa. Na hora em que onça aparece, até em pau-de-sebo um aleijado é capaz de subir. A pobre da Tia Nastácia ia ficar sabendo disso no dia seguinte…”
  • “A razão de Tia Nastácia haver desistido das pernas de pau era que não acreditava muito no tal assalto das onças. “Isso há de ser imaginação dessas crianças”, refletia de si para si. “Os diabretes vivem com a cabeça quente e inventam coisas para atormentar os mais velhos. Não acredito”.”
  • “― Qual nada, sinhá! ― insistiu a negra. ― Onde já se viu onça andar em bando e atacar casa de gente? Estou com setenta anos e nunca ouvi falar de semelhante coisa.”
  • “― Nem eu. Mas lembre-se, Nastácia, que também nunca vimos contar de nenhuma boneca que falasse, nem de nenhum visconde de sabugo que agisse tal qual uma gentinha ― e aí estão Emília e o Visconde de Sabugosa.”
  • “― Lá isso é ― resmungou a preta, pendurando o beiço.”
  • “― Como vou me arranjar? ― repetiu Tia Nastácia, cocando a cabeça. ― Não sei. Francamente, não sei. Na hora veremos…”
  • “― Ché… ― exclamou lá consigo Tia Nastácia. ― Agora é que o sítio pega fogo mesmo. Menina de “propícios”… Credo!”
  • “Tia Nastácia foi para a cozinha acender o fogo para o café. Estava de olho parado, pensando, pensando…”
  • “E Tia Nastácia? Essa ficou embaixo, rezando e riscando a cara e o peito de trêmulos pelo-sinais. apesar de descrente da vinda das onças, que lhe parecia impossível, começou a sentir um horrível medo.”
  • “Só então a pobre negra se convenceu de que tinha errado.”
  • “Sim, era o único jeito ― e Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros”.
  • “Toda a bicharada olhou para cima, com água na boca. Não tinham comido na véspera, o apetite era forte e viram que iam ter uma bela variedade de petiscos ― um menino, duas meninas, um leitão, uma boneca, uma velha branca e uma velha preta. Ótimo!”
  • “As onças estavam decididas a tudo; e, se os pernaltas podiam resistir por muitas horas, o mesmo não acontecia à pobre Tia Nastácia, que já mal se agüentava no mastro. ― Vou cair! ― berrou ela, de repente. Não agüento mais. Minhas mãos já começam a escorregar…”
  • “― Estão vendo? ― disse o onço, passando a língua pela beiçaria. ― O nosso banquete vai começar pela sobremesa. O furrundu está dizendo que não agüenta mais e vai descer…”
  • “― Socorro! ― berrou, num tom de cortar a alma, a pobre Tia Nastácia, que não podendo mais agüentar-se no mastro vinha escorregando lentamente.”
  • “Não foi sem tempo. Tia Nastácia já estava no chão, escarrapachada ao pé do mastro, mais morta do que viva, suando.”
  • “O suor frio da morte. Se as granadas de Emília não tivessem produzido aquele maravilhoso resultado, a boa negra realmente não escaparia de virar furrundu de onça.”
  • “A boneca fez um muxoxo de pouco-caso. Depois, voltando-se para Tia Nastácia:
  • “E você, pretura?”
  • “Tia Nastácia não pôde responder. O susto por que passara fora tanto que havia perdido a voz. Foi preciso darem-lhe a beber uma caneca d’água. Só então pôde abrir a boca e dizer:”
  • “― Você me salvou a vida, Emília, e não há o que pague semelhante coisa. Dou tudo quanto me pedir.”
  • “― Quero aquele pito de barro em que você pita ― respondeu a boneca.”
  • “― Veja, Nastácia, para que deu Pedrinho agora! ― dizia ela. ― Quer caçar rinoceronte… Não sei por quem puxou essa terrível inclinação.”
  • “Tia Nastácia benzia-se. Ignorava o que fosse um rinoceronte, não tendo visto nenhum, nem no cinema, nem em sonho; mas a simples palavra lhe metia medo.”
  • “[Emília] Foi à cozinha e propôs o negócio à Tia Nastácia. A negra, que estava depenando uma galinha, nem a ouviu no começo (…).”
  • “Depois ainda há vovó e Tia Nastácia ― as duas maiores medrosas do mundo.”
  • “― Esse Marquês duma figa está precisando mas é de ir para o forno ― dizia a preta, que nunca tomara muito a sério a fidalguia do leitão.”
  • “A negra, que nada sabia a respeito de rinocerontes, ofereceu-se para ir espantar o bicho com o cabo de vassoura. Mas quando Narizinho lhe mostrou, na História Natural, o retrato dum desses paquidermes e lhe explicou que tamanho tinham e que terrível era o chifre que possuem no meio da testa, a pobre criatura pôs-se a tremer da cabeça aos pés.”
  • “Certa manhã, quando Tia Nastácia se levantou de madrugada e foi abrir a porta da rua, deu com o animalão a vinte passos de distância, olhando para a casa com os seus olhos miúdos. A negra teve um faniquito dos de cair desmaiada no chão. Ouvindo o baque de seu corpo, todos pularam da cama ― e foi uma dificuldade fazê-la voltar a si. Desmaio de negra velha é dos mais rijos. Por fim, acordou e, de olhos esbugalhados, disse num fiozinho de voz:”
  • “― O canhoto foi embora?”
  • “― O tal [canhoto] de um chifre na testa ― respondeu a negra.”
  • “Como fosse pequenino, o Visconde poderia passar por trás do rinoceronte sem ser percebido ― e ainda que fosse percebido e devorado não fazia mal, pois que era de sabugo e havendo muitos sabugos no sítio, Tia Nastácia num momento fazia outro Visconde.”
  • “Emília estava radiante com a ideia de ver o rinoceronte incorporado à família de Dona Benta. Tia Nastácia é que iria ficar tonta de susto…”
  • “Dona Benta viu, com má cara, toda aquela gente encher o terreiro. Já andava enjoada deles e, quando Tia Nastácia falou em lhes oferecer um café com bolinhos, não consentiu.”
  • “― É isso mesmo, sinhá ― tornou a preta. ― O meu cafezinho parece que tem visgo.”
  • “Enquanto o Visconde dava o recado, Emília foi ao pomar com uma faca e trouxe meia dúzia de rodelas de casca de laranja, que colocou no peito de cada morador da casa sem perder tempo em explicar para que era. Só Tia Nastácia insistiu em saber as razões.”
  • “― Ah, não quer? ― disse Emília. ― Sua alma sua palma. Depois não se queixe ― e deixou-a sem rodelas no peito.”
  • “― Parem! Parem! Não ainda! ― berrou Tia Nastácia lá de dentro. ― Estou procurando algodão para botar nos meus ouvidos e nos de Dona Benta. Onde já se viu dar tiro de peça na escadinha da varanda sem a gente estar com um bom chumaço de algodão nos ouvidos? Credo!”
  • “Ao alcançar a escadinha, o rinoceronte não encontrou um só inimigo, isto é, uma só pessoa sem rodela de casca de laranja no peito. Minto. Encontrou uma: Tia Nastácia, e ao vê-la sem rodela pensou que fosse cozinheira da gente do governo. Abaixou a cabeça e investiu. A pobre preta mal teve tempo de trancar-se na despensa, onde fez, no escuro, mais pelo-sinais do que em todo o resto de sua vida.”
  • “― Toma! gritou a diabinha da Emília. ― Quis ser muito sabida, não é? Pois toma…”
  • “A vida no sítio mudou depois da entrada do rinoceronte para o bando. No começo, Narizinho e Pedrinho não podiam esconder certo medo. Quanto a Dona Benta e Tia Nastácia, isso nem é bom falar. Tremiam de pavor sempre que à tarde, conforme seu costume, o paquiderme vinha da Figueira-Brava postar-se no terreiro para longas prosas com a Emília. Nem espiar pela janela espiavam, as coitadas. Mas os meninos espiavam. Regalavam-se de espiar.”
  • “Numa dessas vezes Tia Nastácia criou coragem e entreabriu muito devagarinho a janela. Espiou pela fresta.”
  • “― Nossa Senhora Aparecida! ― exclamou, com os olhos pulando da cara. ― Venha ver, sinhá! A Emília a cavalo no tal boi de um chifre só e o Visconde puxando ele por uma cordinha, como se fosse coisa mais natural do mundo! Credo!…”
  • ― E o Visconde, sinhá, repare o jeitinho dele , puxando o boi…”
  • “― Não é boi, Nastácia, é ri-no-ce-ron-te ― emendou Dona Benta.”
  • “― Para mim é boi ― insistiu a negra. ― Não sei dizer esse nome tão cumprido e feio. Estou velha demais para decorar palavras estrangeiras. Mas repare no Visconde, sinhá. Puxa o boi da África como se estivesse puxando um boizinho de chuchu, daqueles que Pedrinho costuma fazer…”
  • “Um dia Tia Nastácia não resistiu. Foi para o terreiro ver de perto a brincadeira. Quando virou o rosto, viu Dona Benta que vinha vindo. Dona Benta também não resistira à tentação.”
  • “― Ora, graças que se estão civilizando! berrou Narizinho. ― Viva vovó! Viva Tia Nastácia!”
  • “Apesar disso a tentação foi forte e, como Cléu a ia empurrando, Dona Benta de súbito decidiu-se. Ajuntou a saia e, sem olhar para Tia Nastácia (de vergonha), subiu ao carrinho.”
  • “Dona Benta deu um suspiro de alívio e voltou ao terreiro. Queria continuar o seu passeio no carrinho. Mas não pôde. Tia Nastácia já estava escarrapachada dentro dele.”
  • “― Tenha paciência ― dizia a boa criatura. ― Agora chegou minha vez. Negro também é gente, sinhá…”

2 Replies to “Monteiro Lobato e o pensamento mágico nos tribunais”

Os comentários estão fechados.