Saudosos eram os tempos em que a morosidade constituía o principal fator da crise do Judiciário brasileiro! O processo era demorado e caro, mas havia a expectativa de que fosse julgado dentro da ordem legal, mediante aplicação de leis ou de jurisprudência abalizada e coerente. Atualmente, impera a imprevisibilidade e o talante dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Prova irrefutável disso é o Inquérito n. 4.781/2009.
Vulgarmente conhecido como “inquérito das fake news“, foi instaurado por meio da Portaria do Gabinete da Presidência n. 69/19, da lavra do Ministro Dias Toffoli, publicada em 14 de março de 2019.
O fato de o tribunal instaurar inquérito (que é um procedimento investigativo, e não judicante). por si só, já causa estranheza, mas sem razão! Ocorre que o Regimento Interno do STF prevê que esse tipo de procedimento seja aberto e conduzido pelo tribunal, que adquire poder de polícia, desde que para investigar delito ocorrido em suas dependências.
Capítulo VIIIDa Polícia do TribunalArt. 42. O Presidente responde pela polícia do Tribunal. No exercício dessa
atribuição pode requisitar o auxílio de outras autoridades, quando necessário.Art. 43. Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal, o
Presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua
jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro Ministro.§ 1º Nos demais casos, o Presidente poderá proceder na forma deste artigo ou
requisitar a instauração de inquérito à autoridade competente.§ 2º O Ministro incumbido do inquérito designará escrivão dentre os servidores
do Tribunal.Art. 44. A polícia das sessões e das audiências compete ao seu Presidente.Art. 45. Os inquéritos administrativos serão realizados consoante as normas
próprias.
O alarmante é que, sob a desculpa de “velar pela intangibilidade das prerrogativas” da Corte e apurar supostas ofensas à “honrabilidade e segurança” dos ministros, tenha sido conferido significado amplo e impróprio ao termo “dependência”, de modo a autorizar busca e apreensão na casa de jornalistas como Allan do Santos e Bernardo Küster, com base em suas publicações em redes sociais.
Não bastasse a extravagância de considerar que a internet seja dependência do tribunal, verifica-se que o inquérito corre em sigilo até mesmo para os investigados, que não tiveram acesso aos autos para promover sua defesa prévia. Observa-se que, após dois anos de investigação, o inquérito não se transmudou em denúncia. Em outras palavras, apesar da realização reiterada de busca e apreensão, de verdadeiro confisco de bens e até de prisões, como a do jornalista Oswaldo Eustáquio e da ativista Sara Winter, ninguém foi denunciado ainda.
A Polícia Federal não encontrou infração, delito nem crime algum, mas isso não impede os ministros de manter cidadãos de bem na mira de seu mau-humor e arrogância. Desse modo, o Inquérito n. 4.781 pende como a espada de Dâmocles sobre as cabeças de pessoas que ousaram criticar a atuação do STF. Não se trata de uso da máquina pública para defender as instituições judiciárias nem para promover Justiça. É autoritarismo simplesmente que, sendo promovido pela mais alta corte do país, revela-se uma ilegalidade suprema.
Para saber mais sobre o Inquérito n. 4.781/2019
📌 Inquérito 4781/STF, visão crítica, de Eduardo Luiz Santos Cabette, publicado no site Jus.com.br, em julho de 2020.
📌 O único que pode dar um basta no STF é o procurador-geral da República, diz Thaméa Danelon, publicado no Portal Terça Livre, em 07 abr. 2021.
📌 É um inquérito do fim do mundo, diz ministro Marco Aurélio, notícia publicada no site 7 Minutos.
💻 Live do “Inquérito do fim do mundo”, Canal YouTube do Senso Incomum, em 20 ago. 2020.
💻 Conexão KGK – O inquérito do fim do mundo: o apagar das luzes no direito brasileiro, Canal YouTube do Jornal Brasil Sem Medo, transmitido em 23 de fev. 2001.
💻 Íntegra do voto de Marco Aurélio Mello na ADPF 572 – Fake News Polícia Política, publicado no Canal de YouTube de Alex Paniago, em 20 jun. 2020.
REFERÊNCIA
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Regimento Interno. Brasília:
STF, Secretaria de Altos Estudos, Pesquisas e Gestão da Informação, 2020. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/legislacaoRegimentoInterno/anexo/RISTF.pdf>. Acesso em: 28 maio 2021
PIOVEZAN, Cláudia R. de Morais (org.). Inquérito do fim do mundo: o apagar das luzes do Direito Brasileiro. 1. ed. Londrina, PR: Editora E.D.A., 2020.