Ahasverus e o princípio do não-retrocesso

O chamado “princípio do não-retrocesso” é fruto de um movimento jurídico-social(ista) destinado a evitar a revogação dos “direitos sociais” criados pela assembleia constituinte brasileira de 1988. É curioso que tal movimento se tenha iniciado na década de 1990, pouquíssimos anos após a promulgação da Constituição. A contemporaneidade entre surgimento e questionamento dos referidos direitos suscita reflexões: eram sólidas as bases de sua criação? Quem pretendia revertê-los e por que razão? A ameaça de reversão teria consistência, considerando a hierarquia da lei em que inscritos?

No âmbito do STF, sua primeira evocação significativa parece ter ocorrido no julgamento do ARE 639337 AgR, de relatoria do Ministro Celso de Mello, para  fundamentar uma decisão em desfavor de Poder Executivo municipal:

(…) A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL À FRUSTRAÇÃO E AO INADIMPLEMENTO, PELO PODER PÚBLICO, DE DIREITOS PRESTACIONAIS. – O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. – A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculos a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados. (ARE 639337 AgR, Relator (a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125).

Como se infere da ementa, em essência, discutia-se o acesso de criança à rede municipal de ensino (creche), fato jurídico que foi generalizado na expressão “direito à educação” para permitir a atuação invasiva do STF. O emprego da palavra “cláusula” para se referir ao tal princípio evidencia que o ministro o considerava já então incluído no mundo jurídico com status de norma positiva. Era apenas uma metáfora, mas parece que funcionou e criou escola.

Esse princípio foi recentemente evocado por Luís Roberto Barroso para combater, pretensamente em nome da Justiça Eleitoral, o voto impresso no Brasil:

“O voto impresso não seria um mecanismo a mais de auditoria”, afirmou Barroso ao participar de painel do evento on-line Expert XP. “Seria um retrocesso, a volta ao tempo das fraudes eleitorais. O voto impresso traria confusão e balbúrdia”.” (Disponível em: https://valor.globo.com/politica/noticia/2021/08/25/barroso-voto-impresso-traria-confuso-e-balbrdia.ghtml.  Acesso em: 4 set. 2021.)

“O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso, reiterou críticas ao voto impresso. “As urnas eletrônicas são confiáveis. O problema delas é o custo. Retornar ao voto impresso é um retrocesso, é como comprar um videocassete”, declarou, durante live promovida pelo 8º Fórum Liberdade e Democracia, na sexta-feira 6.” (Disponível em: https://revistaoeste.com/politica/barroso-reitera-criticas-ao-voto-impresso-retrocesso/.  Acesso em: 4 set. 2021.)

Fisicamente, se não é possível retroceder, resta estagnar ou mover-se sempre adiante. Social, cognitiva e espiritualmente, a impossibilidade de retroceder implica duas consequências distintas, mas igualmente nefastas: a imutabilidade de uma situação ou a condenação à eterna mudança e, por isso, encontra repúdio na realidade fática e na racionalidade humana. Assusta que haja pessoas a elaborarem princípios com base nela, mesmo que seja um enunciado de natureza jurídica, domínio de conhecimento em que a terminologia, por vezes, engana o homem comum, como ocorre no caso dos “bons antecedentes”.

Na primeira perspectiva, não retroceder implica estagnação, cuja consequência é proibir a retomada a um status quo. Quem está sentado não se levanta; e quem está de pé não se assenta. Suponha-se ter dado início a uma viagem de férias que se mostra desastrosa e incômoda, sem a possibilidade de voltar de imediato para a tranquilidade do lar, apenas para não reverter o percurso. A ideia também soa absurda se aplicada à esfera acadêmica, de modo que o estudante matriculado em determinado curso não possa desistir dele e buscar outro para o qual descobre vocação (ou aptidão), simplesmente porque quer evitar um suposto retrocesso. Aliás, ainda no meio escolar, a aplicação de tal princípio impediria a reprovação por qualquer razão, uma vez que obrigaria o estudante a reiniciar os estudos, em franco retrocesso. Proibido também o remanejamento! A pessoa faz exame de proficiência, sendo colocado no nível dois, por exemplo, mas não pode retroceder, se concluir ser incapaz de cumprir as exigências daquela etapa de ensino. É a imposição do provérbio “ajoelhou, tem que rezar”, desconsiderando que se ajoelha por diversos motivos e que a posição de genuflexão é, na natureza, temporária.

Não é possível estabelecer um limite ideal para todos, de modo que definir o ponto de estagnação deve ser uma decisão pessoal. Então, o empresário que se torna artista plástico não progride? A mulher que abandona posição no mercado de trabalho para dedicar-se ao filho recém-nascido retrocede? O potencial suicida que se permitiu viver mais um dia agiu bem ou mal? Perguntas tão banais demonstram que o estabelecimento de uma situação de conforto e saciedade depende de posição inicial relativa do individuo, de seus valores e de suas escolhas, tanto que são muitos os exemplos de quem trocou o sucesso financeiro pela devoção (à família, à religião, ao estudo etc.), sem ver prejuízo ou retrocesso em tal decisão.

A regra 4 enunciada por Jordan Peterson (2018, p. 114) oferece parâmetro objetivo para autoavaliação do progresso pessoal: “Compare-se a si mesmo com quem você foi ontem, não com quem outra pessoa é hoje”.

Noutra perspectiva, quanto ao afã por constante mudança, no prólogo de “O imbecil coletivo”, Olavo de Carvalho aborda a confusão entre progresso intelectual e avanço tecnológico nos seguintes termos:

“Nosso declínio intelectual foi acompanhado de um notável progresso dos meios materiais de difusão de cultura: ampliação e modernização da indústria livreira, abertura de espaços para o noticiário cultural na TV e nas rádios, aumento prodigioso do número de vagas universitárias, multiplicação das verbas oficiais para a produção cultural etc. Assim, quanto mais baixa a qualidade das ideias,  mais largos os canais por onde se despejam na cabeça do povo – a latrina mental dos intelectuais”.

Professor Olavo também explica que a apologia à ideia de “revolução” vêm do prestígio associado a essa palavra, que é tomada como sinônimo de renovação e progresso. Parece-me que a proposta de não retrocesso incorre em incompreensão semelhante. Afinal,  a vida humana, principalmente em seus aspectos sociais, não é uma sequência linear de eventos regidos pela tendência ao progresso material como pressupõe ― talvez sem o saber ― a pessoa que admite o tal princípio do não-retrocesso. 

Estar sempre movimento e em busca de mudança não significa necessariamente progredir, especialmente porque a melhor ideia de desenvolvimento diz respeito a tomar direção para cima, não obrigatoriamente para frente. Uma árvore desenvolve-se sem sair o lugar – aliás, se sair, não será progresso, mas morte! Castro Alves em “Ahasverus e o gênio” descreve a desgraça do ir sempre adiante, ao cantar a lenda do judeu errante, alegoria com que se explica a diáspora.

Conta o poeta baiano que o judeu foi condenado “a marchar, a marchar no itinerário sem termo do existir”. Imortal, ele caminhou “fugindo embalde à vingadora voz”, indo adiante, sempre adiante “sem ter onde pousar”; impossibilitado, portanto, de voltar a seu lar, à sua família, ao seio de seu povo. Essa maldição, na erudição de Castro Alves, estende-se aos homens geniais. É dessa forma que desaparecem os laços que propiciariam a ambos ― precitos por maldição e por benevolência divina ― “mão de amigo” e “beijos de amor”.

No aspecto espiritual, retroceder significa arrependimento, esquecimento e perdão. Sem o direito de retroceder, tudo é alheio; tudo é miséria. É maldição que impede o filho pródigo de voltar à casa do pai. É a perenização de um erro! Sem conceber o retrocesso de ideias, posturas e atitudes torpes, não cabe chamar “reeducando” ao criminoso submetido às penas da lei, nem por caridade nem por ideologia. 

Certamente, a vedação ao retrocesso não se erige como princípio nem no mundo mágico da jurisprudência do STF. Se assim fosse, não haveria tanta instabilidade jurídica e modulações para permitir o aborto, pois não se vê retrocesso mais vil do que impedir que uma vida venha à luz.

A bem da verdade, não há princípios nem termos na alta corte brasileira, porque os limites são dados na circunstância, conforme objetivos imediatos e, muitas vezes, ideológicos. Esse e outras dezenas de princípios são slogans para apaziguar ânimos e submeter inteligências. A jurisprudência dessa corte está fadada a ser errante como Ahasverus, mas não cabe compará-la à condição do gênio, que suscita palmas e fuga às mulheres devido as suas magnânimas faculdades. É puro arbítrio, falsificação barata que se sustenta na coação e na intangibilidade da toga. Os ministros não precisam dar-se ao trabalho de formular princípios minimante coerentes, pois há mecanismos para impor suas vontades.

No poema mencionado, Castro Alves conta que murmúrios se levantavam quando o judeu passava – o que se repete, por analogia, ao gênio. Admirada e invejosa, populaça perguntava: “ele não morre?”. Os amaldiçoados pela falta ou pelo excesso da graça apenas respondem: “mas eu nunca vivi”. Se não retrocederem de seus arbítrios, o que perguntará o poviléu a respeito dos ministros que reduzem as potências da nação com jogos de palavras? Que murmúrios se elevarão quando passarem diante do público?

 

   REFERÊNCIAS                                         

ALVES, Castro. Espumas flutuantes. Coleção LP&M pocket. Porto Alegre: LP&M, 2011. (versão e-book)

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 12. ed. – conforme última edição revisada pelo autor. São Paulo: Global Editora, 2012. p. 382-283.

PETERSON, Jordan B. 12 regras para a vida: um antídoto contra o caos. Rio de Janeiro: Alta Books, 2018.

SARLET. Igor Wolfgang. O Estado Social de Direito, a Proibição de Retrocesso e a Garantia Fundamental da Propriedade. Disponível em: file:///C:/Users/softa/Documents/princ%C3%ADpio%20do%20n%C3%A3o%20retrocesso%2070941-294071-1-PB.pdf. Acesso em: 4 set. 2021.

 

Páginas consultadas 

Ahasverus e o gênio. In: Jornal de poesia. Disponível em: http://www.jornaldepoesia.jor.br/calves02a.html#ahasverus. Acesso em: 4 set. 2021.

Você conhece o mito do “Judeu Errante”? Biblioteca Irmão João Otão. Disponível em: https://biblioteca.pucrs.br/curiosidades-literarias/voce-conhece-o-mito-do-judeu-errante/. Acesso em: 4 set. 2021.