Julgamento de Frinéia e o triunfo da beleza

Mesmo que o conceito de justiça ainda não esteja plenamente formulado nem na Filosofia nem no Direito, é possível ao homem comum recorrer ao dicionário, para obter um panorama da polissemia dessa palavra e, assim, investigá-la por si mesmo. Do Houaiss eletrônico, extrai-se o seguinte:
justiça s.f. (sXIII) 1  qualidade do que está em conformidade com o que é direito; maneira de perceber, avaliar o que é direito, justo <não há como questionar a j. de sua causa>  2  o reconhecimento do mérito de alguém ou de algo <a história ainda há de fazer-lhe j.>  3  conjunto de órgãos que formam o poder judiciário 4  o conjunto de pessoas que participam do exercício da justiça <a j. vem reivindicando melhores salários>  5  cada uma das jurisdições encarregadas de administrar a justiça <J. Civil> <J. Militar>  ² fazer j. pelas próprias mãos  tomar a si o encargo de julgar e punir; vingar-se ¤ uso inicial maiúsc. quando denota a instituição (a Justiça do Distrito Federal) ou quando us. em sentido absoluto (a Paz e a Justiça são bens por todos desejados) ◾ etim lat. justitìa,ae ‘justiça, equidade ◾ ant. injustiça ◾ hom justiça (fl.justiçar)
Se o dicionário for demasiado simplório, é possível também recorrer a definições mais específicas, como:
  • no Codex Justinianeus, coleção das decisões judiciais dos mais célebres jurisconsultos romanos, reunida por ordem do imperador Justiniano, consta que “o Direito é a arte do bem e do justo”;
  • segundo aponta Aquaviva (1993, p. 754), Ulpiano (“célebre jurisconsulto romano”) afirma que “justiça é dar a cada um o que é seu”, frase que foi discutida (e desconstituída) por Sócrates em “A república”;
  • Miguel Reale (1996, p. 371) afirma que a justiça articula dialeticamente uma pluralidade se valores (liberdade, igualdade, utilidade, ordem, segurança etc.), sem identificar-se com nenhum  deles individualmente.

Da compilação de conceitos, conclui-se que a noção de justiça não está fundada em critérios objetivos (no sentido matemático do termo), mas nas ideias de bem e equidade formuladas na cultura dos povos. Portanto, é natural que, ao longo da história, tenhamos visto julgamentos serem realizados com a pretensão de estabelecer uma justiça cujos valores soam frágeis e questionáveis. Nessa perspectiva, observa-se que o critério para decidir contra ou a favor de um acusado varia conforme a cultura, conforme explicou Reale (1996, p.371):

“Cada época histórica tem a sua imagem ou a sua idéia de justiça, dependente da escala de valores dominante nas respectivas sociedades, mas nenhuma delas é toda a justiça, assim como a mais justa das sentenças não exaure as virtualidades todas do justo”.

Atualmente, a balança pede para as ditas minorias, mas, na Grécia antiga, já houve absolvição por causa da beleza. Foi o que ocorreu no julgamento de Frinéia.

“O julgamento de Frinéia”, de Jean-Léon Gérôme (1861), retrata o argumento e a estratégia de defesa de Hipérides diante do Areópago supremo.

Cortesã de Téspias (séc. IV a.C.), Frinéia foi acusada de impiedade depois que Praxíteles a tomara como modelo para suas estátuas de Afrodite. Ela acabou sendo absolvida pelos heliastas, devido à sua beleza, quando seu advogado, Hipérides, despiu-a diante dos juízes. O argumento de defesa consistia na identificação entre o bom, o bem e o belo como aspectos da divindade. Assim, uma mulher que fora abençoada pelos deuses não poderia ser condenada por um ser humano.
Olavo Bilac tem um poema a respeito, no qual narra o julgamento da grega, mostrando que a acusação consistia na profanação dos mistérios de Elêusis (localidade da Grécia próxima a Atenas onde ritos de iniciação ao culto das deusas agrícolas Deméter e Perséfone eram celebrados).

Poema

O julgamento de Frinéia
                                     Olavo Bilac
Mnezarete, a divina, a pálida Frinéia,
Comparece ante a austera e rígida assembléia
Do Areópago supremo. A Grécia inteira admira
Aquela formosura original, que inspira
E dá vida ao genial cinzel de Praxíteles,
De Hiperides à voz e à palheta de Apeles.
Quando os vinhos, na orgia, os convivas exaltam
E das roupas, enfim, livres os corpos saltam,
Nenhuma hetera sabe a primorosa taça,
Transbordante de Cós, erguer com maior graça,
Nem mostrar, a sorrir, com mais gentil meneio,
Mais formoso quadril, nem mais nevado seio.
Estremecem no altar, ao contempla-la, os deuses
Nua, entre aclamações, nos festivais de Elêusis…
Basta um rápido olhar provocante e lascivo:
Quem na fronte o sentiu curva a fronte, cativo…
Nada iguala o poder de suas mãos pequenas:
Basta um gesto, — e a seus pés roja-se humilde Atenas…
Vai ser julgada. Um véu, tornando inda mais bela
Sua oculta nudez, mal os encantos vela,
Mal a nudez oculta e sensual disfarça.
Cai-lhe, espáduas abaixo, a cabeleira esparsa…
Queda-se a multidão. Ergue-se Eutias. Fala,
E incita o tribunal severo a condená-la:
“Elêusis profanou! É falsa e dissoluta,
Leva ao lar a cizânia e as famílias enluta!
Dos deuses zomba! É ímpia! é má!”
(E o pranto ardente Corre nas faces dela, em fios, lentamente…)
“Por onde os passos move a corrupção se espraia,
E estende-se a discórdia! Heliastes! condenai-a!”
Vacila o tribunal, ouvindo a voz que o doma…
Mas, de pronto, entre a turba Hiperides assoma,
Defende-lhe a inocência, exclama, exora, pede,
Suplica, ordena, exige… O Areópago não cede.
“Pois condenai-a agora!” E à ré, que treme, a branca
Túnica despedaça, e o véu, que a encobre, arranca…
Pasmam subitamente os juízes deslumbrados,
— Leões pelo calmo olhar de um domador curvados:
Nua e branca, de pé, patente à luz do dia
Todo o corpo ideal, Frinéia aparecia
Diante da multidão atônita e surpresa,
No triunfo imortal da Carne e da Beleza.

 

A história de Frinéia demonstra a vantagem do julgamento realizado pelos pares (cidadãos “iguais”), o que ocorre quanto jurados, acusado e acusador partilham a herança cultural, de modo que as mesmas balizas morais os limitam a todos. Quando se colocam acima ou alheios à cultura de seu povo, os julgadores descolam-se da realidade, oferecendo soluções incompatíveis com o senso de justiça de seu tempo e de seu povo. Daí surgem cortes contramajoritárias e “iluministas”, dispostas a conceder liberdade a narcocriminosos com a mesma veemência com que determinam a prisão de quem divulga notícias.

 

AROEIRA. Disponível em: <https://bemblogado.com.br/site/wp-content/uploads/2016/10/STF-do-Choque-Aroeira.jpg>. Acesso em: 30 nov. 2020.


REFERÊNCIAS

AQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário jurídico brasileiro. São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 1993.

BILAC, Olavo. Sarças de fogo. Disponível em:<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000287.pdf>. Acesso em: 27 nov. 2020.

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 1996.

TAVARES, Hênio Último da Cunha. Teoria literária. 5. ed. — Revista e atualizada. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1974.