Boris Johnson, que foi Primeiro-Ministro da Inglaterra de 2019 a 2022, escreveu obra intitulada “O fator Churchill”, em que dissertou sobre a inusitada e alvissareira escolha do controverso político para o comando da Grã-Bretanha, durante a Segunda Guerra Mundial (1940-1945). Em síntese, o autor (2019, s.p.) defende o seguinte ponto fundamental: “um único homem é capaz de fazer toda a diferença”. Tal reverência, mas em magnitude maior, deve ser prestada a Sólon, pela moralidade na administrou Atenas e na instituição de leis que evitaram a ruína da cidade. Ambos os líderes surpreenderam positivamente pela visão civilizacional e pela força de caráter para implantá-la.
Na mesma linha de raciocínio, em “Nossa herança grega”, Will Durant (1995, p. 90) comenta sobre Sólon:
“Parece incrível que no pé em que se encontrava a política ateniense, situação tantas vezes repetida na história das nações, houvesse um homem que, sem um só ato de violência e uma só palavra amarga, fosse capaz de persuadir ricos e pobres a assumirem um compromisso que não só evitava o caos social como estabelecia uma nova ordem política e econômica muito mais generosa e benéfica para o futuro de Atenas. A revolução pacífica de Sólon constitui um dos mais animadores milagres da história”.
De origem aristocrática, mas vocacionado para o comércio, Sólon chegou ao poder, em 594 a.C., com aceitação geral, mas firme apoio de dois grupos sociais em conflito: ricos proprietários de terra e classe média. A integridade de Sólon e seu talento comercial eram reconhecidos — daí a aceitação geral —, mas os oligarcas tinham fé em sua origem, tanto quanto os membros a classe média criam em sua disposição para favorecer a atividade mercantil. Contra as expectativas de ambos, na posição de arconte “eponymos”, Sólon empreendeu uma série de reformas, sem tomar partido de nenhuma das facções que o conduziram ao poder. Em “Constituição de Atenas”, Aristóteles (2012, p. 53) avalia que, “em lugar de se tornar um tirano, filiando-se a um ou ao outro segundo seu desejo, preferiu atrair a animosidade de ambos, salvando a pátria e introduzindo a melhor legislação”.
Apesar do distanciamento partidário líder (a qual talvez seja adequado denominar neutralidade), os atenienses aceitaram e cumpriram as leis de Sólon, mesmo as que agrediam seus interesses classistas. Valendo-se de tal ampla aceitação, Sólon interferiu em vários aspectos da sociedade, com impacto imediato e significativo sobre a estrutura de governo e sobre a economia. Além de reconhecer a efetividade dessas reformas, Durant (1995, p. 95) ressalta sua longevidade:
“A melhor prova da sabedoria de Sólon foram as duradouras consequências de sua legislação. A despeito de mil mudanças e desenvolvimentos, a despeito da vinda de ditaduras e revoluções superficiais, pôde afirmar Cícero cinco séculos depois que as leis de Sólon ainda vigoravam em Atenas”.
Na esfera penal, a legislação de Sólon revogou as leis draconianas, exceto as referentes ao homicídio. Paralelamente, definiu a aplicação das restrições e penalidades indistintamente aos membros de todas as classes sociais, nisso igualando ricos e pobres. Enviou uma mensagem conciliatória ao conceder anistia a todos que haviam sido presos ou exilados por razões políticas, excetuando os atenienses que houvessem intentado usurpar o poder.
Na esfera político-administrativa, Sólon distribuiu a população ateniense livre em quatro classes, definidas com base na renda e na atividade econômica. Conferiu a cada classe específicas prerrogativas (honras), cobrando-lhes taxas proporcionais:
- pentacosiomedimni (também chamados “homens de 500 alqueires”, cuja renda anual atingia 500 medidas de produção) – eram elegíveis para o cargo de arconte e para chefias militares;
- hippes (cuja renda oscilava entre 300 e 500 medidas) – eram elegíveis para cargos públicos inferiores e podiam ingressar na cavalaria;
- zeugitai (com rendimento entre 200 e 300 medidas) – podiam ingressar na infantaria pesada;
- thetes (cuja renda era inferior a 200 medidas) – eram isentos de taxação direta e podiam tornar-se soldados rasos.
Na esfera econômica, suas medidas foram, segundo Durant (1995, p. 91), “simples, mas drásticas”. De imediato, substituiu o padrão monetário, abolindo a moeda egéia em favor do sistema eubeano, o que facilitou o comércio exterior principalmente com os jônios, não obstante gerasse inflação e depreciação da dracma. O efeito reflexo dessa medida foi ferir o patrimônio dos proprietários de terra, que há muito lucravam com empréstimos e expropriações por dívida.
O golpe sobre a oligarquia seria ainda mais forte: para combater a desigualdade econômica, Sólon cancelou todas as dívidas existentes para com particulares e para com o Estado, o que redundou na anulação de todas as hipotecas sobre as terras áticas. Essa lei continha cláusula de retroatividade e, em consequência, foram libertados todos os homens que haviam sido presos ou escravizados por dívida. O perdão foi tão amplo, geral e irrestrito, que implicou a reclamação e repatriamento dos atenienses vendidos como escravos a estrangeiros. Na prática, Sólon extinguiu a escravidão por dívida em Atenas.
Tais medidas não ficaram isentas de suspeitas. Em substrato às reclamações de prejuízo e à acusação de confisco despótico, surgiram denúncias de que Sólon visava beneficiar a classe dos comerciantes, uma vez que a integrava. Contudo, em pouco tempo, as críticas cessaram, porque os atenienses constataram que o próprio arconte experimentara grande perda financeira e patrimonial. Sobre isso Durant (1995, p. 91) registra:
“Os ricos protestaram de modo irrespondível que tais leis não passavam de uma forma de confisco, mas dentro de uma década tornou-se opinião quase unânime que foram elas que salvaram a Ática da revolta”.
Na esfera judiciária, as reformas de Sólon foram também significativas, conquanto menos incisivas. Em síntese, sua legislação manteve o Aerópago como autoridade suprema sobre a conduta do povo e dos funcionários do Estado, mas extinguiu algumas exclusividades. A nova legislação concedeu aos cidadãos das classes baixas direito de elegibilidade para a “healiaea”, o corpo de 6.000 jurados que formavam as cortes aptas a julgar todos os tipos de demandas, exceto homicídio e traição. Às “healiaea” também eram remetidas apelações referentes a atos dos magistrados.
A legislação de Sólon criou o “Conselho dos quatrocentos”, incumbindo-o de indicar os assuntos a serem submetidos à Assembleia. Esse conselho era constituído por 100 integrantes de cada uma das quatro tribos fundadoras de Atenas, o que lhes conferia efetiva representatividade. A Assembleia, por sua vez, era uma recriação da “ekklesia” existente no período homérico. Suas principais incumbências eram: anualmente eleger os arcontes dentre os indicados pelo Aerópago; fiscalizar a administração pública, mediante, a qualquer tempo, convocação, interpelação e suspensão de funcionários; e exame da conduta dos ocupantes de cargos públicos, ao final de seus mandatos, tendo poderes para puni-los e, até, conforme a falta cometida, impedi-los de assumir posição ao Senado, ascensão a que tinham direito.
Confrontados avanços, retrocessos e conflitos, mesmo que não se possa afirmar que tenha agradado a gregos, baianos e troianos, é certo que a atuação de Sólon evitou a ruína de Atenas, pacificou suas classes sociais e construiu alicerces para a prosperidade econômica e política. Muitos historiadores e cientistas políticos da atualidade consideram-no, até, “pai da democracia”. Aristóteles (2012, p. 51) não se desfaz em elogios, mas reconhece a popularidade das reformas promovidas por Sólon e a coesão social por elas gerada, nos seguintes termos:
“Os três traços mais populares da Constituição de Sólon parecem ser os seguintes: primeiro e mais importante, a proibição de empréstimos tendo como garantia a pessoa do devedor; em segundo lugar, o direito de todo indivíduo, que assim o quisesse, de reivindicar proteção a favor de pessoas prejudicadas; e, em terceiro lugar — considerado o que mais contribuiu para o fortalecimento da população — o direito de recorrer às cortes de justiça, pois ao passar a ter o poder soberano do voto, o povo se torna soberano no governo”.
Tendo conduzido tão habilmente a administração da cidade e implantado “a melhor legislação” que os atenienses daquele tempo “poderiam ter recebido” (Sólon apud DURANT, 1995, p. 94), surgiram apelos para que o arconte se tornasse tirano e, assim, mantivesse-se à frente do governo de Atenas, pelo resto da vida. Nessa circunstância, ficou ainda mais evidente que Sólon não era homem de seu tempo e, tampouco, estava à frente dele. Para encerrar os clamores, ele declarou que a ditadura “era coisa muito brilhante, mas sem caminho de saída” (apud DURANT, 1995, p. 94). Em outro momento, quando lhe perguntaram como se chega a um estado ordeiro e bem constituído, ele respondeu: “pela obediência do povo a seus governantes e pela obediência deles às leis” (apud DURANT, 1995, p. 95). Essas palavras de Sólon mostram que a visão civilizacional não se obtém do tempo presente nem do tempo futuro, mas da dimensão atemporal, que permite analisar, do alto, a razão da existência de uma sociedade e vislumbrar o que ela deve ser.
Quando assumiu o mais alto posto da política inglesa, Churchill era já era atormentado pelos fantasmas de sua limitação humana — e o fracasso em Galípoli nunca foi esquecido ou minimizado por ele próprio. Apesar disso, ele tinha fé nas pessoas, tanto que tomou decisões com base na confiança que elas lhe inspiravam. Pronto para erros e acertos, Churchill explicava: “I believe in personality”. Em seu primeiro dia à frente do gabinete, que foi marcado por intenso bombardeio a Londres, ele inspecionou os escombros e tirou a primeira foto fazendo o gesto de v da vitória. Em precário resumo, o fator Churchill talvez seja um misto de autoconfiança, energia para tomar decisões e disposição para o trabalho árduo em vista de um ideal.
Também assim o fator Sólon. Com o final de seu mandato como arconte, o legislador dedicou-se a viajar e aprender. Não obstante o sucesso obtido em Atenas, parece que buscava confirmar o acerto de seus atos e de sua visão civilizacional mediante comparação com as prósperas sociedades de então. Por isso, também precariamente resumido, o fator Sólon pode ser descrito como um misto de autoconfiança, energia para tomar decisões e disposição para o trabalho árduo, em vista de um ideal de prosperidade e bem comum. Na visão desse homem assentaram-se as bases da histórica democracia ateniense até hoje elogiada.
🔍 Conheça a biografia de Sólon, publicada na seção Panteão.
REFERÊNCIA
ARISTÓTELES. Constituição de Atenas. — Tradução e notas Edson Bini. Coleção “Clássicos Edipro”. São Paulo: Edipro, 2012.
DURANT, Will. Nossa herança clássica. 3.ed. Rio de Janeiro (RJ): Record, 1995.
EVERITT, Anthony. A ascensão de Atenas: a história da maior civilização do mundo. São Paulo: Crítica, 2019. [Edição eletrônica.]
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. — Tradução Roberto Leal Ferreira. Coleção “A obra-prima de cada autor”. São Paulo: Martin Claret, 2009.
HESÍODO. História. — Coleção “Clássicos da literatura universal. São Paulo: Montecristo, 2012. [Edição eletrônica.]
JOHNSON, Boris. O fator Churchill: como um homem fez história. — Tradução Renato Marques. 2. ed. São Paulo: Planeta, 2019. [Edição eletrônica]
LUKACS, John. Churchill: visionário. Estadista. Historiador. — Tradução Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. [Edição eletrônica]
PAES, José Paulo (org.). Grandes cartas da história. São Paulo: Cultrix, s.d.