Flagrante delito cessado

Imagine se o policial precisasse esperar um mandado judicial para prender criminoso no ato de cometimento de um delito. Em situações tais, a intervenção de um policial (ou até de um civil) ocorre em razão de ser apanhado o meliante em flagrante delito. Tal modalidade de prisão encontra-se prevista no inciso LXI do art. 5° da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB).

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;

Por outro lado, imagine a pessoa ser presa em casa, em momento no qual não está a cometer qualquer crime, bastando que a Polícia declare tratar-se de flagrante delito…
Essa última situação é tão absurda quanto a primeira, mas — pasmem! — foi exatamente o embaraço criado por Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão tomada nos autos do Inquérito n. 4.781, vulgarmente conhecido como “inquérito das fake news”. Ao determinar a prisão do Deputado Federal Daniel Silveira, o ministro relatou o seguinte:

Na data de hoje (16/02), chegou ao conhecimento desta CORTE vídeo publicado pelo Deputado Federal Daniel Silveira, disponibilizado através do link: https://youtu.be/jMfInDBItog, no canal do youtube denominado “Política Play”, em que o referido deputado durante 19m9s, além de atacar frontalmente os Ministros do Supremo Tribunal Federal, por meio de diversas ameaças e ofensas à honra, expressamente propaga a adoção de medidas antidemocráticas contra o Supremo Tribunal Federal, defendendo o AI-5; inclusive com a substituição imediata de todos os Ministros, bem como instigando a adoção de medidas violentas contra a vida e segurança dos mesmos, em clara afronta aos princípios democráticos, republicanos e da separação de poderes.

Para que não se possa demonstrar que o Ministro foi incapaz de entender ao que assistiu ou que mentiu descaradamente em sua sanha de perseguir as pessoas que o consideram incompetente, o vídeo do Deputado Daniel Silveira foi retirado do ar (por determinação dele). Ao silenciar o opositor (com censura e cadeia), o Ministro vergonhosamente deu vazão à velha narrativa de que criticar o STF é pôr a democracia brasileira em rico.
As manifestações do parlamentar DANIEL SILVEIRA, por meio das
redes sociais, revelam-se gravíssimas, pois, não só atingem a
honorabilidade e constituem ameaça ilegal à segurança dos Ministros do
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, como se revestem de claro intuito
visando a impedir o exercício da judicatura, notadamente a independência do Poder Judiciário e a manutenção do Estado
Democrático de Direito. 
(…) 
 Não existirá um Estado democrático de direito, sem que haja
Poderes de Estado, independentes e harmônicos entre si, bem como
previsão de Direitos Fundamentais e instrumentos que possibilitem a
fiscalização e a perpetuidade desses requisitos. Todos esses temas são de
tal modo interligados, que a derrocada de um, fatalmente, acarretará a
supressão dos demais, trazendo como consequência o nefasto manto do
arbítrio e da ditadura, como ocorreu com a edição do AI-5, defendido
ardorosa, desrespeitosa e vergonhosamente pelo parlamentar.
Imprescindível, portanto, medidas enérgicas para impedir a
perpetuação da atuação criminosa de parlamentar visando lesar ou expor
a perigo de lesão a independência dos Poderes instituídos e ao Estado
Democrático de Direito.
Na presente hipótese, as condutas praticadas pelo referido Deputado
Federal, além de tipificarem crimes contra a honra do Poder Judiciário e
dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, são previstas,
expressamente, na Lei nº 7.170/73, especificamente, nos artigos 17, 18, 22,
incisos I e IV, 23, incisos I, II e IV e 26:
Não bastasse o pensamento metonímico de tomar os ministros pela corte, o famoso Cabeça de Ovo ainda criou a modalidade de flagrante delito cessado, isto é, um crime que continua a acontecer mesmo depois que o suposto criminoso parou de agir. Tal “inovação” baseia-se no entendimento de que a disponibilidade de vídeo na internet caracteriza a continuidade da suposta ação difamatória.
As condutas criminosas do parlamentar configuram flagrante delito,
pois na (sic) verifica-se, de maneira clara e evidente, a perpetuação dos delitos
acima mencionados, uma vez que o referido vídeo permanece disponível e acessível a todos os usuários da rede mundial de computadores, sendo
que até o momento, apenas em um canal que fora disponibilizado, o
vídeo já conta com mais de 55 mil acessos.
Relembre-se que, (sic) considera-se em flagrante delito aquele que está
cometendo a ação penal, ou ainda acabou de cometê-la. Na presente
hipótese, verifica-se que o parlamentar DANIEL SILVEIRA, ao postar e
permitir a divulgação do referido vídeo, que repiso, permanece
disponível nas redes sociais, encontra-se em infração permanente e
consequentemente em flagrante delito, o que permite a consumação de
sua prisão em flagrante.
Os termos da decisão evidenciam que Alexandre de Moraes não está à altura do cargo que ocupa, confirmando também, conforme afirmou o deputado, que o ministro não tem “caráter nem escrúpulo nem moral”. O ministro “entendeu” que Daniel Silveira seria “reiterante na prática criminosa” com base no “inquérito das fake news”, que, após um ano de investigação, não obteve prova contra nenhum dos perseguidos. Aliás, ilegalmente, o inquérito continua a correr sob segredo de justiça e Alexandre de Moraes leva a questão do sigilo tão a sério que, depois de prisões ilegais e buscas e apreensões diversas, os investigados ainda não sabem que imputações lhes foram feitas!
A megalomania que leva o ministro ao pensamento metonímico impede-o de cumprir a regra da igualdade de todos perante a lei, preconizada no artigo 5° da CRFB, que ele cita na decisão. Sentindo-se caluniado, ele não aciona os mecanismos da Justiça como os demais brasileiros precisam fazer. Ele manda prender, abusando da autoridade da corte e da inação dos outros Poderes. Além disso, o homem que, com um transmissão de YouTube, for capaz de “impedir, com emprego de violência ou
grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da
União ou dos Estados” (art. 18 da Lei de Segurança Nacional) será um super-homem ou um super-vilão nos moldes de HQ. Alexandre de Moraes pode ter confundido Daniel Silveira com Lex Lutor!
Ainda não é possível concluir se a criatividade dos ministros do STF para a criação de regras jurídicas decorre de seu analfabetismo funcional ou se o analfabetismo funcional é apenas uma desculpa para criar regras jurídicas mirabolantes. No caso da decisão de Alexandre de Moraes nota-se que, tal como Lewandowski no julgamento de impeachment de Dilma Rousseff, o ministro desconsiderou o valor da conjunção “ou”. No dispositivo da decisão consta:
Diante de todo exposto DETERMINO:
a) a IMEDIATA EFETIVAÇÃO DA PRISÃO EM FLAGRANTE
DELITO
, POR CRIME INAFIANÇÁVEL DO DEPUTADO FEDERAL
DANIEL SILVEIRA. Nos termos do §2º, do artigo 53 da Constituição
Federal, o Presidente da Câmara dos Deputados deverá ser
imediatamente oficiado para as providências que entender cabíveis;
b) que se oficie o YOUTUBE para IMEDIATO BLOQUEIO da
disponibilização do vídeo (link https://youtu.be/jMfInDBItog), sob pena
de multa diária de R$ 100.000,00 (cem mil reais);
(…) 
SERVIRÁ ESSA DECISÃO COMO MANDADO QUE DEVERÁ SER
CUMPRIDO IMEDIATAMENTE E INDEPENDENTEMENTE DE
HORÁRIO POR TRATAR-SE DE PRISÃO EM FLAGRANTE DELITO (grifos nossos).
Retomando-se o inciso VXI do art. 5° da CRFB, observa-se que ali estão definidas as duas modalidade de prisão: (1) em flagrante delito e (2) por mandato (“ordem escrita e fundamentada”). As duas condições não podem ser satisfeitas ao mesmo tempo! A prisão em flagrante delito prescinde de mandado e a prisão por mandado só é possível após a cessação do flagrante, quando a autoridade for provocada a analisar a situação e, reconhecendo o perigo representado pelo acusado, determinar-lhe a prisão.
A figura do flagrante delito cessado  — criada por Alexandre de Moraes para intimidar os brasileiros que discordam dele — é incompatível com o ordenamento jurídico vigente.