O cerne da tragédia “Otelo”, de William Shakespeare, é o ciúme do Mouro, que culmina no assassinato da fidelíssima Desdêmona. Juiz e executor da pena aplicada à esposa, o protagonista suicidou-se, ao perceber que fora levado ao crime por ardil de Iago, seu ínvido alferes. Nesse momento, Otelo assumiu a função de juiz implacável de si mesmo e de executor impiedoso da sentença moral autoimposta.
Apesar de na condição de julgador Otelo ter sido duas vezes irracional e impiedoso, em episódio anterior havia demonstrado grande confiança nas pessoas e na justiça. Ocorre que o Mouro fora julgado formalmente no início da peça e, na condição de réu, valeu-se de racionalidade e amparou-se em procedimentos jurídicos para tornar legítima e socialmente aceitável uma ação precipitada, que desafiava os costumes da cidade que lhe deu acolhida. Por isso é trágico que, ao fim da peça, tenha recusado a Desdêmona os mesmos recursos em que se escudou, quais sejam: a oportunidade de formular defesa, a apresentação de testemunha e a evocação do benefício da dúvida em razão de sua higidez moral.
Sintetiza-se, a seguir, a história para demonstrar essa contradição.
Na primeira cena da peça (ato 1, cena I), Rodrigo e Iago acordam Brabâncio para denunciar-lhe a fuga da filha e seu casamento com o Mouro. Com gritos anônimos, incitam-no a resgatar Desdêmona e a buscar desforra, o que se faria com a prisão de Otelo e a destruição do prestígio de que ele gozava como general do exército de Veneza.
Quando acolheu a sugestão de Rodrigo e Iago, Brabâncio estava convencido de que Otelo enfeitiçara sua filha e a raptara. Afinal, seria impossível que aceitasse núpcias com um mouro “uma donzela que nunca se mostrou atrevida; de espírito tão acomodado e calmo que dela coravam os seus próprios impulsos”.
Para o pai de Desdêmona, era inconcebível a:
“(…) ela… apesar de sua natureza, de sua idade, de seu país de berço, de sua reputação, apesar de tudo… apaixonar-se por essa coisa que lhe punha medo só de olhar!… É deformado e absolutamente imperfeito o julgamento que venha a confessar que a perfeição pode de tal modo errar contra todas as leis da natureza, e fica esse julgamento obrigado a encontrar práticas de diabólica astúcia para explicar tal atrocidade. (…)” (SHAKESPEARE, 2019, p. 25).
Como a consideração e o respeito por Otelo evanesceram por causa do ato considerado aviltante, Brabâncio passa a referir-se a ele com termos ofensivos e preconceituosos. Chamou-o “coisa”. A cor da pele, sua religião e sua origem, que antes não impediam o Mouro de frequentar a corte veneziana e a casa daquele nobre senador, foram apontadas como empecilhos para o casamento. Brabâncio não admitia sequer a possibilidade de Otelo inspirar amizade e amor à donzela, menos ainda o genuíno desejo de desposá-lo.
Foi sob a acusação de feitiçaria que o pai de Desdêmona proclamou a detenção de Otelo e mandou conduzi-lo à prisão, o que não ocorreu somente porque o Doge havia convocado o Mouro anteriormente, e com urgência, para tratar de iminente ofensiva otomana a Chipre. Eis fragmento da cena em que o Mouro, altivo, recebe ordem de prisão dada pelo sogro.
“OTELO – Parados todos, vocês dois que estão comigo e todo o resto. Fosse esta a minha deixa para brigar, eu a teria percebido sem precisar de alguém que a alertasse. — Onde deseja o senhor que eu responda a essa sua acusação?
BRABÂNCIO – Na prisão, até que seja chegada a hora de seres julgado de acordo com a lei, até que os procedimentos de uma sessão honesta chamem-te a responder.
OTELO – E se eu obedecer? Como poderemos ao mesmo tempo deixar satisfeito o Doge, cujos mensageiros encontram-se aqui ao meu lado, em relação a um certo problema corrente do Estado que o faz requisitar minha presença?
1º OFICIAL – É verdade, venerável signior. O Doge está reunido em conselho, e vossa nobre presença, tenho certeza, está também sendo requisitada.
BRABÂNCIO – Mas… Como? O Doge reunido em conselho? A esta hora da noite! — Tragam-no comigo. — Minha questão não é coisa de pouca importância. O próprio Doge, assim como qualquer um dos meus pares na administração do Estado, não pode deixar de sentir esse crime como se fosse contra sua própria pessoa. Se a ações tais for dada livre passagem, logo chegará o dia em que escravos e pagãos tornam-se nossos governantes” (SHAKESPEARE, 2019, p. 25).
Dessa forma, Otelo é mais conduzido que arrestado ao conselho da câmara, onde ocorre seu julgamento pelo Doge e os cônsules togados. Na condição de acusador, Brabâncio dramaticamente introduz seu caso, imputando ao Mouro o uso de “artes ilegais”:
“BRABÂNCIO – Minha filha! Ah, minha filha!
TODOS – Morta?
BRABÂNCIO – Morta para mim. Ela foi enganada, de mim roubada e corrompida por feitiços e drogas compradas de charlatães nômades, pois para que a natureza errasse de modo tão grosseiro, sendo que ela não é nem deficiente, nem cega, nem falta de inteligência, sem feitiçaria isso não teria acontecido” (SHAKESPEARE, 2019, p. 23-24).
Otelo nega a prática de feitiçaria e argumenta que o amor entre ele e Desdêmona surgiu de forma natural, da contínua e amistosa convivência que Brabâncio lhes franqueou.
“OTELO – Meus mui respeitosos, distintos e poderosos senhores, mestres meus, mui nobres e reconhecidamente boníssimos, que eu roubei a filha desse idoso senhor é a mais pura verdade; e é verdade, casei-me com ela. Aí têm os senhores a latitude e longitude de meu crime, em toda a sua extensão, não mais que isso. Rude, apresento-me em meu discurso, e pouco afortunado com as suaves frases que acenam paz, isso porque desde que estes meus braços tinham o muque que dos sete anos de idade até hoje, perdidas apenas umas nove luas, eles empregaram sua força mais preciosa nos campos de batalha. E é sobre muito pouco deste vasto mundo que posso falar… nada além daquilo que se refere a feitos de brigas e batalhas. Assim é que pouco ajudo minha própria causa quando a defendo eu mesmo. Contudo, auxiliado pela paciência dos senhores, proponho-me a expor-lhes minha história, completa e sem rodeios, da trajetória de um amor: que droga, quais feitiços, que invocações mágicas e que magia poderosa… pois é desse tipo de procedimentos que estou sendo acusado… usei para seduzir a filha desse homem” (SHAKESPEARE, 2019, p. 24).
Em seguida, fazendo discurso em defesa própria, Otelo apresenta seus argumentos eloquentes e bem amoldados à racionalidade jurídica.
“OTELO – O pai dela me tinha em grande apreço, e seguidas vezes convidava-me à sua casa. Sempre me perguntava sobre a história de minha vida, ano a ano… as batalhas, os cercos, as venturas por que passei. E eu contava tudo, contando desde os dias de minha infância até aquele exato momento em que ele me pedia que lhe relatasse os fatos de minha vida. Assim foi que passei a narrar acasos os mais desastrosos, acidentes tocantes e sangrentos dos campos de batalha. Falei de como consegui escapar por um fio da morte iminente, de como fui feito prisioneiro pelo insolente inimigo e vendido como escravo. Contei sobre minha liberação desse tempo e relatei a história de minha conduta em minhas viagens. Assim foi que descobri vastas cavernas e desertos desocupados, escabrosos montes de cadáveres empilhados, ásperos rochedos e montanhas cujos picos podiam tocar o céu… Essa era a minha deixa para falar… Esse era o processo… E falei dos canibais, que se comiam uns aos outros, os antropófagos, e falei de homens cujas cabeças crescem debaixo dos ombros. Para tudo isso escutar, Desdêmona inclinava a cabeça, seu olhar muito compenetrado. Mas os afazeres da casa afastavam-na dali e, no entanto, sempre que ela podia, desvencilhava-se deles prontamente para mais uma vez voltar e, com o ouvido ávido, devorar meu discurso. Isso eu observei, e aproveitei-me de um momento propício para dela arrancar a súplica de um coração sincero e fervoroso: que eu lhe relatasse em detalhes toda a minha peregrinação por este mundo, história da qual ela ouvira alguma coisa, sempre entrecortada, e nunca com a devida atenção. A isso consenti, e não foram poucas as vezes que a encantei a ponto de fazê-la chorar, quando lhe narrava algum evento mais sofrido de minha juventude. Tendo contado minha história, em troca de minhas dores ela presenteou-me com um mundo de suspiros, declarando-me, na verdade, que minha história era estranha e, ainda, mais que estranha: digna de pena, maravilhosamente digna de pena. Ela agora desejava não tê-la escutado e, no entanto, desejava também que, por vontade dos céus, tivesse sido ela esse homem. Agradeceu-me e pediu que, no caso de ter eu um amigo que a amasse, ensinasse a ele como contar minha história, e isso bastaria para enamorá-la. Tendo ela feito tal insinuação, falei eu. Ela me amava pelos perigos por que eu havia passado, e eu a amava por ter ela se compadecido de mim. Essa a única feitiçaria que usei. (…)” (SHAKESPEARE, 2019, p. 24-27).
Ao final desse exórdio, Otelo pede que seja permitido à amada testemunhar, o que lhe é concedido. A prova então produzida é decisiva, uma vez as declarações de Desdêmona são consideradas francas e assertivas pelos jurados.
“DESDÊMONA – Meu pobre pai, percebo aqui um dever dividido. Ao senhor, devo minha vida e minha educação. Tanto uma como outra ensinam-me a respeitá-lo. O senhor é soberano em matéria de dever, e tenho sido até agora sua filha. Mas eis aqui o meu marido, e, tanta obediência quanto minha mãe mostrou ao senhor, dando preferência ao senhor e não ao próprio pai, assim venho eu requerer meu direito de professar minha obrigação para com o Mouro, meu amo e senhor” (SHAKESPEARE, 2019, p. 28).
Diante dos cônsules togados, juízes de sua causa, Otelo adotou a estratégia jurídico-discursiva de caracterizar a legitimidade do seu amor (ato 1, cena III). Sua tática de defesa envolvia também uma abordagem política: a evocação de seu prestígio militar e de sua importância como comandante à frente do exército da cidade. Desde que previra a oposição ao seu casamento com Desdêmona — por isso mesmo entabulado e realizado às escondidas —, Otelo dispôs-se a evocar seu prestígio, de forma tácita ou explícita, conforme se desenrolasse o julgamento. Foi isso o que ele declarou a Iago (ato 1, cena II), no momento em que o alferes relatou que sua honra fora questionada, fazendo-lhe ardilosamente o seguinte alerta:
“IAGO – (…) o senhor seu sogro, um dos Magníficos de Veneza, é muito amado e tem a seu favor o potencial de uma voz que consegue se fazer ouvir duas vezes mais alto que a do Doge. Ele conseguirá o seu divórcio, ou então infernizará a sua vida com todas as detenções, restrições e vexames que os tribunais venham a permitir aplicar, dado o poder que ele tem de fazer valer a lei (SHAKESPEARE, 2019, p. 17).
Não obstante as diversidades, Otelo venceu a demanda: manteve a esposa, o prestígio e a posição. Sua tática de defesa articulou eficiente argumento jurídico e eloquência com uma pauta política. No plano discursivo, ele apresentou os acontecimentos de forma lógica, coerente e verossímil aos julgadores, corroborando sua narrativa com o firme testemunho da amada. Valeu-se, portanto, de argumento fático. No plano político, apostou que o peso de sua reputação moral e militar faria pender a seu favor a solução da contenda. Em nada disso, havia engodo. De fato, o Mouro havia prestado serviços inestimáveis ao Estado e, por isso, desfrutava do respeito do povo e do Doge, de modo que essa estratégia não poderia ser tomada como uma falsificação ou chantagem. Sua biografia era ilustre e fora construída antes do premente ataque otomano a Chipre. Portanto, cabia reconhecer-lhe bons antecedentes, na acepção denotativa da expressão. Nessa perspectiva, vê-se que não foi por acaso que, em seu discurso de defesa, Otelo mencionou seu passado de desafios, superação e vitórias. De maneira discreta, ele descreveu suas qualidades morais e militares, criando condições subjetivas para que os membros do conselho ponderassem que as potências de espírito do Mouro já estavam a serviço do Estado, não sendo coerente que tomassem o casamento como uma traição ou desrespeito. Antes, o casamento estreitaria seus laços com a cidade, aumentando sua lealdade aos patrícios da esposa.
Na conclusão do julgamento, o Doge pronuncia-se buscando a conciliação entre Brabâncio e Otelo, ao explicar que a precipitação do general não justifica a exasperação do nobre senador:
“DOGE – Deixe-me falar como o senhor [Brabâncio] mesmo falou, e decretar uma sentença que, como alavanca ou degrau, pode auxiliar esse casal de apaixonados a granjear sua simpatia. Quando o irreparável está feito, cessam-se as dores vendo-se que poderia ter sido pior aquilo que no fim confiou-se um desejo ardente. Lamentar um infortúnio que está morto e enterrado é dar o passo certo na direção de atrair para si novo infortúnio. Há sempre aquilo que não pode ser preservado quando o Destino tem as rédeas na mão, mas a Paciência encarrega-se de fazer do prejuízo uma zombaria. Aquele que foi roubado, quando sorri, furta algo do ladrão, e rouba a si mesmo quem se consome em mágoa inútil” (SHAKESPEARE, 2019, p. 29).
Os cônsules foram justos com Otelo. Porém, a memória dessa justiça não se fez presente quando, mais tarde, Desdêmona esteve à sua mercê, sob a suspeita de traição. O Conselho da cidade absolveu-o com base em elementos do processo: fragilidade da acusação (imputação não demonstrada), coerência da narrativa defensiva, consistência da prova testemunhal e idoneidade pessoal do réu. É possível que tenha pesado o fator político — não como abono da conduta do Mouro, mas como indício da retidão de seu propósito. Em contraste (eis a dupla tragédia), ciúme e intemperança impediram Otelo de portar-se com benevolência e prudência para com a amada.
Bom caráter e boas intenções não evitam a ocorrência de tragédias. Aliás, segundo Brereton apud MOISÉS (2004, p.450), esses fatores são a substância desse gênero literário:
“a tragédia é uma desgraça final e impressionante, motivada por erro imprevisto ou involuntário, envolvendo pessoas que merecem respeito e empatia. Geralmente, implica uma irônica mudança da sorte e comunica uma forte impressão de vazio”.
Apesar de ter explorado a racionalidade jurídica para obter a aceitação social e a legitimidade de seu amor, o protagonista foi absolutamente irascível ao julgar as ações e sentimentos de sua amada. Por isso, “Otelo” não é uma tragédia apenas sobre o amor, mas também sobre a justiça. Se, na condição de réu, o Mouro obteve julgamento lastreado em argumentação e provas; ao fazer-se juiz, apoiou-se em meros rumores e aparências para concluir pela traição da esposa. Não sendo capaz de facultar a ela os procedimentos de defesa que ele anteriormente utilizara, matou-a. Executou a sentença sem permitir o contraditório.
Descoberto o erro e sendo impossível propor ação rescisória à morte, Otelo tirou a própria vida. Realizou-se assim a catarse, tradicionalmente exigida no gênero tragédia. Se tivesse submetido ao conselho da câmara um pedido de divórcio ou se tivesse denunciado Desdêmona e Cássio por infidelidade ou traição, é provável que a verdade emergisse do processo judicial, triunfando sobre o ardil, a fragilidade emocional, a insegurança, o ciúme e a intemperança. Otelo mostrou-se incapaz de agir com prudência: primeiro perdeu seu senso de justiça e, por isso, assassinou sua amada; depois, tendo matado seu propósito de vida, aniquilou-se para purificar-se do cometimento de indesculpável injustiça.
Reencena-se a tragédia de Otelo toda vez que um amante descrente da Justiça impõe sua vontade irascível e imponderada ao objeto de seu amor. Para a infeliz, como a catarse judicial foi substituída por processos demorados e penas relativamente brandas, a condenação de assassinos e abusadores tem impacto pedagógico pequeno sobre potenciais perpetradores de violência doméstica. Que fique, então, a lição obtida da literatura, para que o receio da injustiça evite tragédias de amor.
REFERÊNCIAS
MOISES, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 2004.
NEVES, José Roberto de Castro. Medida por medida: o Direito em Shakespeare. — 5. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Edições Janeiro, 2016. p. 303-312.
SHAKESPEARE, William. Otelo. — Clássicos L&PM. Porto Alegre: L&PM, 2019.