A obra de Machado de Assis está repleta de personagens que marcam o leitor devido ao caráter ambíguo, medíocre, interesseiro, inseguro, preguiçoso, avaro ou dissimulado. Os adjetivos, que isolados soam depreciativos, nem sempre estão registrados nos textos machadianos, sendo, algumas vezes, inferências a que o narrador conduz o leitor. O autor tende a encadear acontecimentos e a apresentar juízos repletos de nuances, sendo mestre em utilizar o foco narrativo em 1ª pessoa para gerar dúvida e criar suspense quanto à moralidade das personagens. Não é, portanto, sem razão que se recordam facilmente os “olhos de ressaca” de Capitu e se eterniza o debate em torno da traição matrimonial.
No romance Helena, ao lado dos protagonistas sobre os quais incide o drama da bastardia e do incesto, há os bem caracterizados Doutor Camargo e sua filha, Eugênia. No primeiro, destaca-se a interessada mesquinhez; na segunda, a imaturidade. Eles mereceram da pena machadiana capítulos inteiros e cenas reveladoras das facetas menos honradas do espírito humano. Contudo, existe nessa obra uma personagem que, não obstante tenha aparecido em duas ou três cenas — nas quais atua apenas ilustrativamente, fazendo comentário brevíssimo —, recebe uma descrição psicológica considerável. Trata-se de Doutor Matos, um advogado, cuja descrição consta do capítulo 4:
A crítica é mordaz e facilmente depreendida! O narrador enfatiza que o advogado nada sabia da ciência do direito e, não obstante, criou seu cabedal aplicando-o. Não há menção na obra à causa do sucesso de Matos. O narrador não comenta se o advogado gozou de sorte, se tinha erudição de sofista ou se se valia de artimanhas ou desonestidades.
Importa que, tomando a obra para recompor a época retratada, extraem-se elementos que autorizam concluir que, pelo menos no imaginário de então, havia já desvinculação entre saber jurídico e justiça. Mutatis mutandis, com tal parâmetro, Doutor Matos bem poderia ser cotado para uma cadeira do STF atual.
REFERÊNCIAS