Doutor Matos, um advogado machadiano

A obra de Machado de Assis está repleta de personagens que marcam o leitor devido ao caráter ambíguo, medíocre, interesseiro, inseguro, preguiçoso, avaro ou dissimulado. Os adjetivos, que isolados soam depreciativos, nem sempre estão registrados nos textos machadianos, sendo, algumas vezes, inferências a que o narrador conduz o leitor. O autor tende a encadear acontecimentos e a apresentar juízos repletos de nuances, sendo mestre em utilizar o foco narrativo em 1ª pessoa para gerar dúvida e criar suspense quanto à moralidade das personagens. Não é, portanto, sem razão que se recordam facilmente os “olhos de ressaca” de Capitu e se eterniza o debate em torno da traição matrimonial.

No romance Helena, ao lado dos protagonistas sobre os quais incide o drama da bastardia e do incesto, há os bem caracterizados Doutor Camargo e sua filha, Eugênia. No primeiro, destaca-se a interessada mesquinhez; na segunda, a imaturidade. Eles mereceram da pena machadiana capítulos inteiros e cenas reveladoras das facetas menos honradas do espírito humano. Contudo, existe nessa obra uma personagem que, não obstante tenha aparecido em duas ou três cenas — nas quais atua apenas ilustrativamente, fazendo comentário brevíssimo —, recebe uma descrição psicológica considerável. Trata-se de Doutor Matos, um advogado, cuja descrição consta do capítulo 4:

O doutor Matos era um velho advogado que, em compensação da ciência do direito, que não sabia, possuía noções muito aproveitáveis de meteorologia e botânica, da arte de comer, do voltarete, do gamão e da política. Era impossível a ninguém queixar-se do calor ou do frio, sem ouvir dele a causa e a natureza de um e outro, e logo a divisão das estações, a diferença dos climas, influência destes, as chuvas, os ventos, a neve, as vazantes dos rios e suas enchentes, as marés e a pororoca. Ele falava com igual abundância das qualidades terapêuticas de uma erva, do nome científico de uma flor, da estrutura de certo vegetal e suas peculiaridades. Alheio às paixões da política, se abria a boca em tal assunto era para criticar igualmente de liberais e conservadores — os quais todos lhe pareciam abaixo do país. O jogo e a comida achavam-no cético; e nada lhe avivava tanto a fisionomia como um bom gamão depois de um bom jantar. Estas prendas faziam do doutor Matos um conviva interessante nas noites que o não eram. Posto soubesse efetivamente alguma coisa dos assuntos que lhe eram prezados, não ganhou o pecúlio que possuía, professando a botânica ou a meteorologia, mas aplicando as regras do direito, que ignorou até a morte. (grifos meus)

A crítica é mordaz e facilmente depreendida! O narrador enfatiza que o advogado nada sabia da ciência do direito e, não obstante, criou seu cabedal aplicando-o. Não há menção na obra à causa do sucesso de Matos. O narrador não comenta se o advogado gozou de sorte, se tinha erudição de sofista ou se se valia de artimanhas ou desonestidades.

Importa que, tomando a obra para recompor a época retratada, extraem-se elementos que autorizam concluir que, pelo menos no imaginário de então, havia já desvinculação entre saber jurídico e justiça. Mutatis mutandis, com tal parâmetro, Doutor Matos bem poderia ser cotado para uma cadeira do STF atual.


REFERÊNCIAS

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Clássicos da Língua Portuguesa. Montecristo Editora: São Paulo, 2012.