Explicando a cultura judicial a equinos

 

“Viagens de Gulliver”, de Johnatan Swift, é uma obra literária famosa por retratar a chegada de um náufrago a Lilipute, onde os habitantes são minúsculos. Também é conhecida a parte da narrativa em que o náufrago aporta no Reino de Brobdingang, no qual os habitantes são gigantes, muito maiores do que ele póprio. Porém, há pouquíssimas referências à passagem de Gulliver por dois outros reinos: a terra dos fantasmas (Glubdudrib) e a terra dos equinos.

Em todos as quatro partes da obra, o narrador-personagem descreve as sociedades visitadas, preocupando-se em comparar a língua e a cultura local com costumes europeus. Nessas comparações, Gulliver percebe inferioridades e superioridades, falhas e avanços diversos, especialmente considerando a atitude dos governantes que o acolhem, sua personalidade e a forma como exercem poder sobre seus súditos.

Na última de suas aventuras, Gulliver vê-se na terra dos equinos, chamada Huyhnhnm. Ali os cavalos são animais inteligentes, sensíveis e sociáveis; eles caracterizam-se, sobretudo, pela retidão moral, tanto que em sua língua sequer existia a palavra “mentira”.

Em suas “memórias”, Gulliver narrou o sentimento de perplexidade dos huyhnhnms sobre a disposição humana para mentir:

 

(…) Recordo-me até de que, conversando algumas vezes com meu amo a respeito das propriedades da natureza humana, tal como existe nas outras partes do mundo, e havia ocasião para lhe falar da mentira e do engano, tinha muito custo em perceber o que lhe queria dizer, porque raciocinava assim: o uso da palavra foi-nos dado para comunicar uns aos outros o que pensamos e para sabermos o que ignoramos. Ora, se se diz a coisa que não é, não se procede conforme a intenção da natureza; faz-se um abusivo uso da palavra; fala-se e não se fala. Falar não é fazer compreender o que se pensa?

— Ora, quando o senhor faz o que se chama mentir, dá-me a compreender o que não se pensa: em vez de me dizer o que é, não fala, só abre a boca para articular sons vãos, não me tira da ignorância, aumenta-a.

Tal é ideia que os huyhnhnms têm da faculdade de mentir, que nós, homens, possuímos num grau tão perfeito e eminente.

Quando Gulliver lhe explica que o ser humano usa vestimentas por questão de decência, comodidade e proteção, o cavalo baio que o havia acolhido vê nessa necessidade um traço de inferioridade do viajante.
 — A natureza — dizia ele — fez-nos presentes vergonhosos, furtivos e criminosos? Quanto a nós — acrescentou — não coramos com esses dotes e não nos envergonhamos de os expôr às claras. No entanto — prossegui — não quero contrariá-lo.
Despi-me, pois, decentemente, para satisfazer à curiosidade de sua honra, que deu grandes mostras de admiração ao ver a configuração de todas as partes decentes do corpo. Levantou o meu vestuário, peça por peça, tomando-o entre o casco e a ranilha e examinou-o atentamente; gabou-me, acariciou-me e deu várias voltas em torno de mim; em seguida, disse com gravidade que era evidentemente um Yahu, e que não diferia de todos os da minha espécie senão por ter a carne menos dura e mais branca, com uma pele mais macia; que não tinha pêlo na maior parte do corpo; que tinha garras mais curtas e de configuração um pouco diferente, e que afetava andar apenas com as patas traseiras. (…)

“Gulliver Addressing the Houyhnhnms” (1769), de Sawrey Gilpin

Quando Gulliver explica as características e o funcionamento da sociedade europeia ao cavalo baio, ele fica ainda mais horrorizado com a existência de dinheiro, com a necessidade de leis e com o tratamento humilhante dado aos seres de sua espécie.
Reconhecendo que moralmente os equinos são superiores aos europeus, Gulliver descreve, com cuidado e omissões respeitosas, a relação entre humanos e os equinos em sua sociedade. É ao explicar o conceito de dinheiro que se obrigado a abordara cultura judicial de seu povo e as relações de poder estabelecidas nessa esfera de atuação. Nesse momento, acaba traçando o perfil dos sujeitos envolvidos com as práticas judiciais.

— O número daqueles que, entre nós, se dão à jurisprudência e fazem profissão de interpretar lei, é infinito e ultrapassa o das lagartas. Têm entre si todas as espécies de escalas, de distinções e de nomes. Como a sua enorme quantidade torna o ofício pouco lucrativo, para fazer de maneira que, ao menos, lhes dê para viver, recorrem à indústria e à chicana. Aprenderam, logo nos primeiros anos, a arte maravilhosa de provar, com um discurso retorcido, que o preto é branco e o branco é preto.

— São estes que arruinam e despojam os outros, com a sua habilidade? — atalhou sua honra.

— São, decerto —  repliquei eu — e vou citar-lhe um exemplo, a fim de que melhor possa ajuizar do que digo. Imagine que o meu vizinho tem vontade de possuir a minha vaca; vai logo ter com um procurador, isto é, um douto intérprete de prática da lei, e promete-lhe uma recompensa se puder fazer ver que a minha vaca não é minha. Sou obrigado a dirigir-me também a um Yahu da mesma profissão para defender a mim próprio. Ora, eu, que tenho certamente por um lado a justiça e o direito, nem por isso deixo de encontrar dois grandes obstáculos; o primeiro é que o Yahu, ao qual recorri para defender minha causa, está, por ofício e espírito profissional, habituado desde a mocidade a advogar a falsidade, de maneira que se vê fora do seu elemento quando lhe digo a verdade nua e não sabe como desvencilhar-se; o segundo obstáculo é que o esmo procurador, não obstante a simplicidade do pleito de que o encarreguei, é obrigado a embrulhá-lo, para se conformar com o uso dos seus colegas e prolongá-lo o mais que puder, do contrário acusá-lo-iam de estragar o ofício e dar mau exemplo. Estando as coisas neste pé, só me restam dois meios para me desembaraçar da questão: o primeiro é ir ter com o procurador da parte contrária e tentar suborná-lo, dando-lhe o dobro do que esperava receber do seu constituinte; e decerto vossa honra compreende que me não é difícil fazê-lo pender para uma proposta tão vantajosa; o segundo meio, que vai talvez surpreendê-lo, mas é menos infalível, é recomendar a este Yahu, que me serve de procurador, pleiteie a minha causa um pouco confusamente e faça entrever aos juízes que a minha vaca podia não ser minha, mas do meu vizinho. Então, os juízes, pouco habituados às coisas claras e simples, darão mais atenção aos subtis argumentos do meu advogado, acharão gosto em ouvi-lo e a contrabalançar o pró e o contra e, nesse caso, estarão melhor dispostos a julgar em meu favor do que se ele se limitasse a provar o direito, que me assiste, em quatro palavras. Uma das máximas dos juízes é que tudo quanto foi julgado, foi bem julgado. Assim, têm o máximo cuidado em conservar num cartório todas as decisões anteriormente tomadas, mesmo as ditadas pela ignorância, e que são o mais manifestamente possível opostas à equidade e à justa razão. Estas anteriores decisões formam o que se chama jurisprudência; são alegadas como autoridades e não há coisa algum que não se prove e não se justifique, citando-as. Data de há pouco, contudo, o abandono do abuso que havia em dar tanta força à autoridade das causas julgadas; citam-se sentenças pró e contra, trata-se de ver que as espécies nunca podem ser completamente semelhantes e ouvi dizer a um juiz que as sentenças são para aqueles que as alcançam. De resto, a atenção dos juízes volta-se sempre mais para as circunstâncias do que para a causa principal. Por exemplo: no caso da minha vaca, quererão saber se é vermelha ou negra, se tem grandes cornos; em que campina costuma pastar; que quantidade de leite fornece por dia, e assim sucessivamente; isto feito, põem-se a consultar as antigas decisões. De tempos a tempos trata-se da questão; por muito felizes se deve dar o constituinte se for julgada ao fim de dez anos! É preciso observar ainda que os homens de lei têm uma linguagem especial, um calão que lhes é próprio; um modo de se exprimir que os outros não entendem; é nesta magnífica linguagem que são escritas as leis, leis multiplicadas ao infinito e acompanhadas de inúmeras exceções. Vossa honra vê perfeitamente que, neste labirinto, o justo direito se perde facilmente; que a melhor questão é difícil de ganhar-se; e que, e algum estrangeiro, nascido trezentas léguas do meu país, tivesse a lembrança de vir disputar-me uma herança que está na posse de minha família há trezentos anos, lhe seriam precisos talvez trinta anos para concluir e esgotar por completo este difícil pleito.

— É pena — atalhou meu amo — que uma gente com tanto gênio e talento não encaminhe o espírito para outro lado, fazendo dele bom uso. Não seria melhor — acrescentou — que se ocupassem em dar aos outros lições de prudência e de virtude, e participassem com o público das suas luzes? Porque, indubitavelmente, essa gente possui conhecimento de todas as ciências.

— Qual história! —  repliquei — Sabem apenas de seu mister e nada mais; são os maiores ignorantes do mundo sobre qualquer outra matéria; são inimigos da boa literatura, de todas as ciências, e, nas relações vulgares da vida, parecem estúpidos, mazombos, enfadonhos, malcriados. Falo na generalidade, porque se encontram alguns espíritos agradáveis e galantes.
O quadro que o autor pinta da justiça europeia não é bonito. Trata-se de um ambiente perverso em que gananciosos procuradores (advogados) convivem tranquilamente com juízes arrogantes e egoístas, confusão que conduz os constituintes (as pessoas comuns) a preferirem a mentira à verdade, pois “casos extraordinários” causam melhores efeitos nas cortes.
Descontada a crítica ao liberalismo econômico e a denúncia do pecado da avareza, que são subjacentes às obras de Swift, verifica-se que muitas das queixas do narrador contra juristas de sua época coincidem com reclamações que a sociedade brasileira atualmente direciona ao Poder Judiciário e às entidades auxiliares da estrutura judicial, pois vislumbram-se:
  • desvirtuamento das ações,
  • falta de compromisso com a verdade,
  • incongruência entre meios utilizados e fins almejados,
  • apego à autoridade,
  • descolamento em relação à realidade, e
  • uso de linguagem hermética.
A estada no reino dos huyhnhnms foi a última das aventuras de Gulliver. Após ser banido dali, ele volta para sua Inglaterra pesaroso de ter sido obrigado a abandonar uma sociedade equina tão mais humana do que a europeia.

REFERÊNCIAS
SWIFT, Johnatan (1667-1745). Viagens de Gulliver [Travels into several remote nations of the word – in four parts]. Clássicos Jackson vol. XXXI, 1950. (e-book) Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/eb000001.pdf>. Acesso em: 27 nov. 2020.
SWIFT, Johnatan (1667-1745). Uma modesta proposta para prevenir que, na Irlanda, as crianças dos pobres sejam uma fardo para os pais ou para o país, e para as tornar benéficas para a República. Disponível em: <http://www.helenabarbas.net/traducoes/2004_Swift_Proposal_H_Barbas.pdf>. Acesso em: 27 nov. 2020.
TAVARES, Hênio Último da Cunha. Teoria literária. 5. ed. — Revista e atualizada. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1974.