Prisão em flagrante: entre o idealismo e a defesa da sociedade

A prisão em flagrante é instituto cujas condições estão previstas no Capítulo II do Código de Processo Penal nos seguintes termos:

Art. 301. Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.

Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem:
I – está cometendo a infração penal;
II – acaba de cometê-la;
III – é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;
IV – é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.
Art. 303. Nas infrações permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência.

A caracterização do flagrante exige certeza ― ou, pelo menos razoável convicção ― quanto à ocorrência de ato criminoso. Mas, aparências enganam e, não  raro, existe no ser humano a intenção de ludibriar visando a ganhos pessoais ou ideológicos, senão a ambos.

A depender da perspectiva, uma cena configurar-se diferentemente aos olhos do observador.

Um fragmento do evento pode ser recortado para favorecer uma versão.

Portanto, quanto ao flagrante, o grande problema que se afigura na prática é que, em alguns casos, a situação em andamento envolve-se de penumbra, sendo difícil transpor a barreira da suspeita. Quando há risco de grave prejuízo, que benefício há para a sociedade se a intervenção suspensa por cautela resulta em  crime consumado ou impunidade do criminoso?

Essa dúvida, que certamente acompanha todo policial, encontra-se perfeitamente representada na crônica “Prisão em flagrante”, de Fernando Sabino.

Ressalta-se que, anos atrás, conduzir suspeitos para averiguação era comum. A segurança da sociedade era um bem que se sobrepunha a eventual importunação de um indivíduo. Hoje, o garantismo penal inibem até mesmo a ação policial pautada em indícios palpáveis de autoria delitiva e os jornais sem pudor noticiam que homens filmados portando fuzil e atirando em policiais são apenas “suspeitos” de participar de organização criminosa.

Prisão em flagrante
           Fernando Sabino
Confesso que não resisto a um ajuntamento. Vou Chegando como quem não quer nada, pergunto ao circunstante mais bem encarado o que foi que houve, se não há perigo de prenderem a gente, nem de tiros ou correrias, se houve mortos, se há sangue à vista… Procuro, na ponta dos pés, enxergar alguma coisa por cima das cabeças, ajeito-me discretamente e me disponho a ficar espiando também. Se vislumbro, todavia, a luz de uma vela entre as pernas dos que me estão à frente, vou tratando de dar o fora. Nunca tive forças para olhar de perto o rosto do infeliz, imediatamente pálido e crispado no ricto definitivo.
Camelôs, propagandistas, músicos de rua e comedores de vidro sempre me detiveram os passos. Limito-me, evidentemente, a ficar olhando com ar superior e cético, para afinal afastar-me com um sorriso de enfado, se alguém me puxa dizendo “vamos embora”. Mas bem que no íntimo gostaria de ficar até o fim da mágica.
Ou até que chegue a radiopatrulha. Porque às vezes se trata de uma prisão em flagrante. Neste caso, minha tendência é sempre a de assumir apenas interiormente a defesa do mais fraco ― pois a polícia é sempre o mais forte. Se as circunstâncias o permitirem sou capaz de meter o bedelho, puxar uma conversinha e, farejando simpatia, enunciar mesmo a minha modesta, porém sincera opinião. Mas se as coisas esquentam, nada me credencia a perguntar se eles sabem com quem estão falando ― por isso em geral sou mal sucedido, e antes que as coisas esquentem enfio a viola no saco e vou saindo de fininho para cuidar de minha vida.
Não foi o que aconteceu outros dia, ali perto do Jóquei Clube. Eram onze e meia da noite quando eu ia passando e vi o ajuntamento. Depois de verificar que outros carros também já haviam parado, detive o meu a precavida distância e saltei. Foi no bater e no meu jeito apressado de sair que a estranha situação se formou. Os olhos de todos os circunstantes se voltam para mim ― e eram já uma pequena multidão ― os mais próximos instintivamente se afastando para que eu passasse. Fui direto até o centro da roda que se abrira para engolir-me, levado pelo ímpeto de curiosidade que me fizera parar, e me vi diante de um preto contido por dois guardas, que me olhavam com respeito. Ao redor se fez um silêncio submisso.
― Que foi que houve? ― perguntei a um deles, tentando um ar displicente.
Ora, se já são sou nenhuma criança, pelo menos reconheço humildemente que minha aparência não é de molde a confundir com a de nenhuma respeitável autoridade, da categoria de um ministro ou general. Na ordem das coisas, eu passaria, quando muito, por um modesto capitão. Pois foi como general que me tomaram. O guarda bateu continência e só faltava me chamar de Vossa Excelência ao explicar-me que o “indivíduo fora preso ao sair de um matinho em atitude suspeita”. E que não tinha documento, suas explicações não satisfaziam. O preto pôs-se logo a dizer-me, choroso, que em matéria de satisfazer, só explicava a necessidade que o levara ao tal matinho. “Não tive nem tempo de abotoar minha roupa”, lamuriou-se. Depois de ouvi-lo atentamente, voltei-me para os guardas: “É verdade?”, perguntei apenas, e então já me sentia investido da autoridade que eles próprios me conferiam, e que o silêncio ao redor só fazia sacramentar. Os guardas disseram que não: havia dois outros com ele, que fugiram, um chegou mesmo a atirar uma arma ali dentro do bueiro. “Doutor, isto é elemento conhecido, tem havido muita queixa de assalto por aqui ultimamente…” Fiz um gesto de que dizia: isso mesmo, eu compreendo, cumpram com seu dever. Não acreditava a essa altura que minha autoridade fosse bastante para soltar o preto. “Podem deixar que ele arrume a roupa”, falei, e tive a surpresa de me ver prontamente obedecido. Esperava que ele se aproveitasse para fugir quando o largassem, mas não: ficou me olhando parado enquanto se recompunha.
Continuei ali, sem saber mais o que fazer. Os guardas e os circunstantes aguardavam de mim uma atitude ― agora, qualquer que ela fosse, minhas explicações é que acabariam não satisfazendo. É verdade que eu não declinara nenhuma qualidade senão a de enxerido, mas de mim dependia que soltassem o homem, como no íntimo eu desejava; e acabariam me levando preso em seu lugar. Já me sentia sem nenhuma autoridade, ante a expectativa geral. Não saberia mais tirar partido do equívoco.
― Por que você tentou fugir? ― perguntei ao preso, para ganhar tempo.
― Porque eles queriam me prender ― respondeu ele, e sua lógica era irrefutável.
― Eles estão cumprindo seu dever, o que é que você queria? Para eles você é suspeito. Não sabe explicar direito o que estava fazendo. Quem eram os outros?
― Não sei dos outros não. Já disse o que eu tinha ido fazer…
― Você não tem documentos, não é isso mesmo?
E como ele baixasse a cabeça, dizendo que não:
― Pois então? Eles têm que investigar, meu velho. Não bota banca não, que é pior. Levam você, se não houver nada tornam a soltar, o que é que há?
Silêncio de aprovação. Estava restaurada a ordem que o pobre-diabo violara ao sair do matinho. A sociedade recebia a satisfação devida. Um dos guardas chegou a murmurar: “é isso mesmo…” Voltei-me para eles:
― É isso mesmo ― repeti.
E já me justificando aos olhos dos outros, aos meus olhos ― aos olhos de Deus:
― Não há outro jeito…
Afastei-me em passos firmes, e só então verifiquei que vinte anos haviam passado. Eu que saltara do carro ainda moço, inocente e destemido, agora regressava um velho cauteloso e experiente. E derrotado.
SABINO, Fernando. O homem nu. 36. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997. p.135-138.

É interessante o “envelhecimento” do protagonista após sua primeira experiência de pacificação social. Bastaram os olhos e o silêncio aprovador da população para censurar seu idealismo, fazendo-o ver que a responsabilidade de defender os mais fracos precisava ser conciliada com as expectativas de justiça e segurança dos demais membros da sociedade.


REFEFÊNCIAS
BRASIL. Planalto. Código de processo penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm>. Acesso em: 20 maio 2021.
SABINO, Fernando. O homem nu. 36. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997.