A região que os gregos denominaram Mesopotâmia é considerada o berço da humanidade, porque ali floresceram poderosas cidades-estado que, nutridas pela fertilidade da terra entre os rios Tigre e Eufrates e pelo desejo de transcendência, tornaram-se prósperas civilizações. Ao longo de séculos, sumérios, acádios, babilônios e assírios revezaram-se no domínio do território e na liderança política. Se as civilizações mesopotâmicas da Antiguidade construíram governos centralizados, obras monumentais, fortificações, exércitos e cultura artística consistentes, é porque, antes, haviam estabelecido ordenamento civil e penal, sem o qual não existiria coesão social nem prosperidade econômica.
Conquanto tenham sido encontrados muitos fragmentos de textos, esculturas e fortificações, grande parte da cultura dos povos mesopotâmicos antigos diluiu-se nas águas do tempo ou se fundiu no fogo de consecutivas batalhas. É providencial que tenha remanescido, íntegra e intacta, preciosa relíquia jurídica: um conjunto de normas civis e penais, mandado insculpir em pedra pelo Rei Hamurabi, que governou a Babilônia entre 1792 e 1750 a.C. Na estela descoberta em 1902, estão gravados 282 enunciados, em sua maioria formulados como proposições lógico-condicionais (se… então). Eis um exemplo:
“Art. 3º. Se um homem, em processo, se apresenta como testemunha de acusação e não prova o que disse, se o processo importa perda de vida, ele deverá ser morto” (HAMURABI, 2011, p. 11).
É certo que Hamurabi não foi o primeiro governante a enunciar leis, tampouco elaborou sozinho o código que mandou insculpir em caracteres cuneiformes acádicos e afixar na entrada da cidade de Babel. Normas de comportamento social — das regras de etiqueta ao direito positivo — resultam de interações longevas entre os membros do corpo social e pautam-se na moralidade construída sob a égide da transcendência. Quando chegam a ser escritas e efetivamente implantadas, já eram aceitas e praticadas no cotidiano das relações sociais, mesmo que com alguma variação. No caso de um império em construção, deve-se admitir que fossem consenso pelo menos na cidade em ascensão, que teria força para impô-las às terras conquistadas.
Considera-se, por isso, que o “Código de Hamurabi” seja, na verdade, a transcrição de uma série de tradicionais normas vigentes sobre vários aspectos da vida cotidiana: sortilégio, comodato, empréstimo, dívida, compra, locação e família, conforme ilustram os exemplos a seguir.
“Cultivo do campo, locação e cultivo dos fundos rústicos
Art. 35. Se um homem comprou, de um arrendatário do palácio, gado bovino ou ovino que o rei deu a uma pessoa, ele perderá a sua prata.
(…)
Das sociedades
Art. 102. Se um mercador deu prata a um comissionado como capital de trabalho, e sofreu prejuízo onde esteve, restituirá ao mercador o capital.
Art. 103. Se durante a viagem de negócios um inimigo o fez entregar alguma coisa que carregava, o comissionado pronunciará um juramento diante de Deus e sairá livre.
(…)
Injúria e difamação – Da família
Art. 138. Se um homem quer abandonar sua primeira esposa, que não lhe gerou filhos, dar-lhe-á prata correspondente, isto é, o preço que o pai do noivo pagou ao pai da noiva, e restituir-lhe-á o dote que trouxe de seu pai. Só então poderá abandoná-la.
Empréstimo e locação de bois
Art. 241. Se um homem tomou um boi como garanti de uma dívida, pesará um terço de uma mina de prata como multa.
Art. 244. Se um homem alugou um boi ou um jumento e se um leão o matou em campo aberto, a perda serão de seu proprietário.
(…)
Dos escravos; rescisões de contrato de venda; renegação do dono
Art. 278. Se um homem comprou um escravo ou escrava e antes de completar o seu mês foi acometido de epilepsia, ele o reconduzirá ao vendedor e o comprador levará consigo a prata que tiver pesado.
Art. 270. Se um homem comprou um escravo ou uma escrava e surgirem reivindicações, seu vendedor deverá responder às reivindicações.
(…)” (HAMURABI, 2011, p. 14-39; fragmento).
Na obra “Dos sumérios a Babel”, em que conta detalhadamente a história das diversas civilizações mesopotâmicas, Federico Mella (s.d., p. 146) afirma que, na parte referente ao direito civil, o “Código de Hamurabi” consiste na compilação de consagradas normas sumerianas. Para esse povo, “longa vida, negócios prósperos e saúde excelente” eram “sinais tangíveis de uma vida honesta e pia”, em conformidade com os desígnios divinos. Aliás, tais benefícios adviriam da proteção dos deuses e de anjos da guarda, de modo que os receberia apenas quem cumprissem seus deveres e se comportasse adequadamente. Caso contrário, “os anjos da guarda ou o deus, ofendidos, desertavam o desgraçado e desimpediam o caminho dos demônios malignos” (MELLA, s.d., p. 52). Auspício idêntico estaria reservado à cidade ímpia, pois “aquela que não seguisse minuciosamente os preceitos do deus era punida com a guerra, a peste ou outras catástrofes” (ibdem).
Existem muitas coincidências entre regras de natureza civil compiladas por Hamurabi e os fragmentos encontrados do código de Ur-Nammu, que é bem mais antigo, o que demonstra que o rei babilônico fundou-se, em suma, na tradição sumeriana. Por outro lado, quanto às normas de natureza penal, Mella afirma que Hamurabi optou pela moral severa de tribos do deserto que, adotando “Lei de Talião”, cominavam a pena capital para punir diversos delitos, até mesmo os de natureza patrimonial, como exemplificado a seguir.
“Art. 6º. Se um homem roubou bens de Deus ou do palácio, deverá ser morto juntamente com aquele que recebeu o objeto roubado.
Art. 7º. Se um homem comprou ou recebeu em custódia prata ou ouro, escravo ou escrava, boi ou ovelha, asno ou qualquer outro valor da mão do filho de alguém ou do escravo de um homem, sem testemunha nem contrato, esse homem é ladrão e deverá ser morto” (HAMURABI, 2011, p. 11).
O recrudescimento penal explica-se, em parte, pela visão civilizatória de Hamurabi, que precisava impor ordem a uma diversidade de povos, cidades e etnias, para transformar a Babilônia em uma nação imperial. Com esse intuito, ele atuou em diversas frentes: externamente, empreendeu conquistas militares e buscou a unificação da língua, ao conferir prestígio diplomático ao dialeto babilônio-acâdico; internamente, enfatizou a função sacerdotal, de elo entre deuses e homens, que as religiões da Antiguidade conferiam aos reis. Apoiando-se na noção de transcendência vigente, as normas jurídicas enunciadas por Hamurabi eram a expressão da justiça divina, cuja benevolência e fúria, de certo modo, respaldavam-se nas tradições dos povos submetidos.
Sobre o papel sacerdotal do rei e sua legitimidade para administrar a justiça, Fustel de Coulanges (2009, p. 190) explica:
“A religião recomendava que o fogo sagrado tivesse sempre um sumo sacerdote. Não admitia que a autoridade sacerdotal fosse compartilhada. O fogo sagrado doméstico tinha um sumo sacerdote, que era o pai de família; o fogo sagrado da cúria tinha o seu curião ou fratriarca; cada tribo tinha também seu chefe religioso, a que os atenienses chamavam rei da tribo. A religião da cidade devia ter também o seu sacerdote supremo.
Esse sacerdote da lareira pública tinha o nome de rei. (…)”.
Hamurabi não só aceitou, mas também alardeou sua função sacerdotal, registrando-a na estela, para que todos os seus súditos a reconhecessem, respeitassem e admirassem. Nessa perspectiva, a estela é, ao mesmo tempo, obra de arte, documento jurídico e peça de propaganda. A imagem esculpida superior mostra o rei de pé, com as mãos postas em posição de oração, recebendo instruções diretamente do deus Shamash, que lhe entrega o cetro e o bracelete, representativos de seu poder e seu favor. No prólogo do código, o próprio Hamurabi relata o recebimento da incumbência de administrar a justiça, sem poupar autoelogios:
“Quando o alto Anu, rei de Anunaki e Bel, Senhor da Terra e dos Céus, determinador dos destinos do mundo, entregou o governo de toda a humanidade a Marduk; quando foi pronunciado o alto nome da Babilônia, quando ele a fez famosa no mundo e nela estabeleceu um duradouro reino, cujos alicerces tinham a firmeza do céu e da terra, por esse tempo Anu e Bel me chamaram, a mim, Hammurabi, o excelso príncipe, o adorador dos Deuses, para implantar a justiça na terra, para destruir os maus e o mal, para prevenir a opressão do fraco pelo forte, para iluminar o mundo e propiciar o bem-estar do povo. Hammurabi, governador escolhido por Bel, sou eu. Eu, o que trouxe a abundância à terra; o que fez obra completa para Nippur e Burilu; o que deu vida à cidade de Uruk; supriu água com abundância aos seus habitantes; o que tornou bela a cidade de Brasippa; o que enceleirou grãos para a poderosa Urash; o que ajudou o povo em tempo de necessidade; o que estabeleceu a segurança na Babilônia; o governador do povo, o servo cujos feitos são agradáveis a Anu”.
O fecho do código reforça os méritos de Hamurabi e sua disposição de assentar, por meio da justiça, as bases da civilização babilônica:
“As justas leis que Hamurabi, o sábio rei, estabeleceu e com as quais deu base estável ao seu governo: — Eu sou o governador guardião, em meu seio trago o povo das terras de Sumer e Acad. Em minha sabedoria eu os refreio para que o forte não oprima o fraco e para que seja feita a justiça à viúva e ao órfão. Que cada homem oprimido compareça diante de mim, como rei que sou da justiça. Deixai-o ler a inscrição do meu monumento. Deixai-o atentar às minhas ponderadas palavras. E possa o meu monumento iluminá-lo quanto à causa que traz, e possa ele compreender o seu caso. Possa ele folgar o coração, exclamando: Hamurabi é, na verdade, como um pai para seu povo, estabeleceu a prosperidade para sempre e deu um governo pura à terra.
Nos dias vindouros por todo tempo futuro, possa o rei que estiver no trono observar as palavras de justiça que eu tracei em meu monumento”.
Do ponto de vista histórico, constata-se que a justiça de Hamurabi é a compilação das tradições dos diversos povos mesopotâmicos, cuja cultura confluía em diversos aspectos e divergia em alguns. Por isso, em espectro, podia comportar as tradições comerciais sumerianas e a severa moral dos povos do deserto. Porém, seu argumento de fundo não era a tradição histórica, mas a transcendência. Em suma, a crença em valores atemporais emanados da divindade demonstra que, desde as ancestrais civilizações, tanto o humilde pastor quanto o poderoso rei intuíam a fonte imaterial da justiça.
🔍 Leia o “Código de Hamurabi” na íntegra.
🔍 Conheça a biografia de Hamurabi, publicada na seção Panteão.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
COLARES, Virgínia. A Estela do Código de Hammurabi: uma leitura semiótica In: Universidade Católica de Pernambuco. Revista Symposium. Número Especial. Ano 3 (julho-99). p. 48-54. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/2671/2671.PDF. Acesso em: 09 jun. 2023.
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. — Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martin Claret, 2009.
HAMURABI. Código de Hamurabi; Código de Manu; Leis das XII Tábuas. 3. ed. — Série Clássicos Edipro. São Paulo: Edipro, 2011.
HISTÓRIA DO MUNDO. Código de Hamurabi. Disponível em: https://www.historiadomundo.com.br/babilonia/codigos-penais-hamurabi.htm. Acesso em: 09 jun. 2023.
MELLA, Federico A. Arborio. Dos sumérios a Babel: Mesopotâmia – história, civilização e cultura. — Tradução de Norberto de Paula Lima. s.l.: Hemus, s.d.
SMARTHISTORY. A Estela do Código de Leis do Rei Hamurabi. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JO9YxZYd0qY. Acesso em: 10 jun. 2023.