Tal como em Roma, na Atenas da Antiguidade, instauraram-se diferentes regimes políticos. Entre a monarquia e a democracia houve governos de transição, em que formas híbridas de condução do estado e legislação inovadora assentaram bases sólidas para ampliar a participação popular e equalizar direitos. O mais importante desses governos foi, sem dúvida, realizado por Sólon.
De origem aristocrática, mas vocacionado para o comércio, Sólon nasceu em 638 a.C., em uma família eupátrida, aparentada com descendentes do Rei Codro. Chegou ao poder em 594 a.C., aos 44 anos, com aceitação geral, mas firme apoio de dois grupos sociais em franco conflito: ricos proprietários de terra e classe média. A integridade de Sólon e seu talento comercial eram amplamente reconhecidos — daí a aceitação geral —, mas isso não impediu que os oligarcas tivessem fé no peso de sua origem, tanto quanto os membros a classe média cressem em sua disposição para favorecer a atividade mercantil. Fustel de Coulanges (2009, p. 296) comenta que “Sólon tinha a rara sorte de pertencer ao mesmo tempo aos eupátridas por nascimento e aos comerciantes pelas ocupações da juventude”.
Vista por si só, a juventude de Sólon autorizava prever-lhe uma maturidade com tendência despótica ou revolucionária, nenhuma das quais, felizmente, se concretizou. A condição de eupátrida facultou a ele boa educação e ócio para tornar-se poeta. Seus versos, afirma Fustel de Coulanges (2009, p. 296), “mostravam-no-lo como um homem completamente liberto dos preconceitos de sua casta; pelo espírito conciliador; pelo gosto da riqueza e do luxo, por seu amor do prazer”. Sua personalidade madura, contudo, tendeu para o bem comum. Como resultado da associação entre circunstância histórica, educação e caráter, Sólon entoo cantos de pacificação social em versos como estes, citados por Aristóteles (2012, p.46):
“(…) e em meu peito transborda de dor ao contemplar;
A terra mais antiga da Jônia sendo destruída…
(…)
… Em vossos corações refreai a disposição obstinada,
Mergulhados na saciedade de bens copiosos,
E moderai vosso orgulho! Nem sempre nos submeteremos,
E nem vós mesmos tereis o que tendes agora sem ser diminuído…”.
Em “Nossa herança grega”, Will Durant (1995, p. 91) comenta que “ao atingir a maturidade, seu caráter melhorou na razão inversa de sua poesia”. Esse autor (1995, p. 90) registra sua surpresa com a concretização de uma improbabilidade histórica:
“Parece incrível que no pé em que se encontrava a política ateniense, situação tantas vezes repetida na história das nações, houvesse um homem que, sem um só ato de violência e uma só palavra amarga, fosse capaz de persuadir ricos e pobres a assumirem um compromisso que não só evitava o caos social como estabelecia uma nova ordem política e econômica muito mais generosa e benéfica para o futuro de Atenas. A revolução pacífica de Sólon constitui um dos mais animadores milagres da história”.
Contrariando as expectativas, na posição de arconte “eponymos”, Sólon empreendeu uma série de reformas, sem tomar partido de nenhuma das facções que o alçaram ao poder. Em “Constituição de Atenas”, Aristóteles (2012, p. 53) avalia que, “em lugar de se tornar um tirano, filiando-se a um ou ao outro segundo seu desejo, [Sólon] preferiu atrair a animosidade de ambos, salvando a pátria e introduzindo a melhor legislação”.
Apesar da independência partidária de Sólon, os atenienses aceitaram e cumpriram seus decretos, mesmo os que confrontavam seus interesses classistas. Valendo-se de tal ampla aceitação, o arconte interferiu em vários aspectos da sociedade, com impacto imediato e significativo sobre a estrutura de governo e sobre a economia da cidade. Além de apontar a efetividade dessas reformas naquele tempo, Durant (1995, p. 95) ressalta sua longevidade:
“A melhor prova da sabedoria de Sólon foram as duradouras consequências de sua legislação. A despeito de mil mudanças e desenvolvimentos, a despeito da vinda de ditaduras e revoluções superficiais, pôde afirmar Cícero cinco séculos depois que as leis de Sólon ainda vigoravam em Atenas”.
Pondera-se que o sucesso do ideal civilizacional de Sólon não pode ter decorrido apenas de sua circunstância e personalidade, sendo coerente crer que a maior parte das normas implantadas se mostrassem consentâneas aos debates filosóficos da época e não modificassem radicalmente as tradições da pólis. Nessa perspectiva, sua legislação deve ser classificada essencialmente como reformadora, e não como revolucionária, dado que o abandono abrupto da tradição geraria caos ao invés de ordem.
Ao longo dos 22 anos como arconte, Sólon promoveu reformas que incidiram sobre diversos aspectos da vida na pólis, alguns dos quais causam hoje estranheza pela pontualidade da circunstância atingida.
Na esfera moral, as interferências foram variadas. Em geral, se não estabeleciam nova ordem nos costumes, pelo menos cominavam penalidades mais brandas a comportamentos reprováveis. A título de exemplo, destaca-se que Sólon:
- transformou a desocupação em crime e proibiu homens com vida depravada de se dirigirem à Assembleia;
- legalizou e taxou a prostituição, colocando os bordéis sob a supervisão do Estado e exigindo-lhes licenciamento — com o dinheiro arrecadado, construiu um templo em honra de Afrodite Pandemos;
- estabeleceu multa (100 dracmas) para quem violasse mulheres livres, revogando a pena draconiana;
- legitimou a ação do traído que, em caso de flagrante de adultério, matasse o traidor com as próprias mãos;
- limitou o valor dos dotes, para favorecer o casamento com base na afeição e, assim, fomentar a procriação;
- proibiu (inutilmente, aliás) as mulheres de possuírem mais de três vestidos;
- declarou crime falar mal dos mortos ou da vida alheia, dentro dos templos, das cortes e das repartições públicas bem como durante os jogos;
- proibiu a neutralidade política em tempos de sedição, sob pena de perda da cidadania, por considerar que a indiferença do público significaria a ruína do Estado;
- limitou a quantidade e os tipos de objetos que poderiam ser enterrados com os mortos;
- definiu a responsabilidade do Estado para com os filhos dos cidadãos mortos em combate — credita-se a essa norma, pelo menos em parte, a disposição dos atenienses ao heroísmo em batalha.
Sobre a ampla interferência normativa na moralidade da cidade, Durant (1995, p. 94) registra um fato curioso: quando pediram que legislasse contra os solteiros, Sólon recusou-se, sob o argumento de que uma esposa seria “fardo bem pesado e difícil de carregar”.
Na esfera penal, a legislação de Sólon revogou as leis draconianas, exceto as referentes ao homicídio. Paralelamente, definiu a aplicação das restrições e penalidades indistintamente aos membros de todas as classes sociais, nisso igualando ricos e pobres. Enviou uma mensagem conciliatória ao conceder anistia a todos que haviam sido presos ou exilados por razões políticas, excetuando os atenienses que houvessem intentado usurpar o poder.
Na esfera político-administrativa, Sólon distribuiu a população ateniense livre em quatro classes, definidas com base na renda e na atividade econômica. Conferiu a cada uma delas específicas prerrogativas (honras), cobrando-lhes taxas proporcionais:
- pentacosiomedimni (também chamados “homens de 500 alqueires”, cuja renda anual atingia 500 medidas de produção) – eram elegíveis para o cargo de arconte e para chefias militares;
- hippes (cuja renda oscilava entre 300 e 500 medidas) – eram elegíveis para cargos públicos inferiores e podiam ingressar na cavalaria;
- zeugitai (com rendimento entre 200 e 300 medidas) – podiam ingressar na infantaria pesada;
- thetes (cuja renda era inferior a 200 medidas) – eram isentos de taxação direta e podiam tornar-se soldados rasos.
Na esfera econômica, suas medidas foram, segundo Durant (1995, p. 91), “simples, mas drásticas”. De imediato, substituiu o padrão monetário, abolindo a moeda egeia em favor do sistema eubeano, o que facilitou o comércio exterior principalmente com os jônios, não obstante gerasse inflação e depreciação da dracma. O efeito reflexo dessa medida foi ferir o patrimônio dos proprietários de terra, que há muito lucravam com empréstimos e expropriações por dívida.
O golpe sobre a oligarquia seria ainda mais forte: para combater a desigualdade econômica, Sólon cancelou todas as dívidas existentes para com particulares e para com o Estado, o que redundou na anulação de todas as hipotecas sobre as terras áticas. Essa lei continha cláusula de retroatividade e, em consequência, foram libertados todos os homens que haviam sido presos ou escravizados por dívida. O perdão foi tão amplo, geral e irrestrito, que implicou reclamação e repatriamento dos atenienses vendidos como escravos a estrangeiros. Na prática, Sólon extinguiu a escravidão por dívida em Atenas.
Tais medidas econômicas não ficaram isentas de suspeitas. Em substrato às reclamações de prejuízo e à acusação de confisco despótico, surgiram denúncias de que Sólon visava beneficiar a classe dos comerciantes, uma vez que a integrava. Contudo, em pouco tempo, as críticas cessaram, porque os atenienses constataram que o próprio arconte experimentara grande perda financeira e patrimonial. Sobre isso Durant (1995, p. 91) registra:
“Os ricos protestaram de modo irrespondível que tais leis não passavam de uma forma de confisco, mas dentro de uma década tornou-se opinião quase unânime que foram elas que salvaram a Ática da revolta”.
Na esfera judiciária, as reformas de Sólon foram também significativas, conquanto menos incisivas. Em síntese, sua legislação manteve o Aerópago como autoridade suprema sobre a conduta do povo e dos funcionários do Estado, mas extinguiu algumas exclusividades. A nova legislação concedeu aos cidadãos das classes baixas direito de elegibilidade para a “healiaea”, o corpo de 6.000 jurados que formavam as cortes aptas a julgar todos os tipos de demandas, exceto homicídio e traição. Às “healiaea”, também eram remetidas apelações referentes a atos dos magistrados.
A legislação de Sólon criou o “Conselho dos quatrocentos”, incumbindo-o de indicar os assuntos a serem submetidos à Assembleia. Esse conselho era constituído por 100 integrantes de cada uma das quatro tribos fundadoras de Atenas, o que lhes conferia efetiva representatividade. A Assembleia, por sua vez, era uma recriação da “ekklesia” existente no período homérico. Suas principais incumbências eram: anualmente eleger os arcontes dentre os indicados pelo Aerópago; fiscalizar a administração pública a qualquer tempo, mediante convocação, interpelação e suspensão de funcionários; e exame da conduta dos ocupantes de cargos públicos, ao final de seus mandatos, tendo poderes para puni-los e, até, conforme a falta cometida, impedi-los de assumir posição no Senado, ascensão a que tinham direito.
Confrontados avanços, retrocessos, dissensões e conciliações, mesmo que não se possa afirmar que tenha agradado a gregos, baianos e troianos, a atuação de Sólon evitou a ruína de Atenas, pacificou suas classes sociais, evitando iminente conflito, e construiu alicerces para a prosperidade econômica e política da cidade, razão por que muitos historiadores e cientistas políticos da atualidade consideram-no, até, “pai da democracia”. Aristóteles (2012, p. 51) não se desfaz em tão largos elogios, mas reconhece a popularidade das reformas promovidas por Sólon e a coesão social por elas gerada:
“Os três traços mais populares da Constituição de Sólon parecem ser os seguintes: primeiro e mais importante, a proibição de empréstimos tendo como garantia a pessoa do devedor; em segundo lugar, o direito de todo indivíduo, que assim o quisesse, de reivindicar proteção a favor de pessoas prejudicadas; e, em terceiro lugar — considerado o que mais contribuiu para o fortalecimento da população — o direito de recorrer às cortes de justiça, pois ao passar a ter o poder soberano do voto, o povo se torna soberano no governo”.
Tendo conduzido tão habilmente a administração da cidade e implantado “a melhor legislação” que os atenienses daquele tempo “poderiam ter recebido” (Sólon apud DURANT, 1995, p. 94), surgiram apelos para que o arconte se tornasse tirano e, assim, permanecesse à frente do governo de Atenas pelo resto da vida. Nessa circunstância, ficou ainda mais evidente que Sólon não era homem de seu tempo e, tampouco, estava à frente dele. Para encerrar tais clamores, ele declarou que a ditadura “era coisa muito brilhante, mas sem caminho de saída” (apud DURANT, 1995, p. 94). Em outro momento, quando lhe perguntaram como se chega a um estado ordeiro e bem constituído, ele respondeu: “pela obediência do povo a seus governantes e pela obediência deles às leis” (apud DURANT, 1995, p. 95). Essas palavras de Sólon mostram que a visão civilizacional não se obtém do tempo presente nem de uma esperança do tempo futuro, mas da dimensão atemporal, que permite analisar, do alto, a razão da existência de uma sociedade e vislumbrar o que ela deve ser.
Com o final de seu mandato como arconte, o legislador retirou-se à vida privada, dedicando-se a viajar e aprender. Nesse momento, com 66 anos, ele teria declarado: Envelheço aprendendo”. Em suas viagens, não obstante o sucesso obtido, parece que buscava confirmar o acerto de seus atos e de sua visão civilizacional mediante comparação com as prósperas sociedades de então. Com esse intuito foi a Heliópolis, ao Egito, a Chipre e à Lídia, onde conheceu o Rei Creso e sua grande riqueza. A esse monarca, Sólon escreveu:
“Causa-me grande surprêsa a tua amizade e juro-te por Minerva que, não houvesse eu decidido viver sob um govêrno democrativo, quereria antes morar no teu reino do quem em Atenas, violentamente tiranizada por Pisístrato. Sinto-me, porém, mais a gôsto onde os direitos sejam iguais entre todos. Desembarcarei aí, não obstante, nem que seja para ser teu hóspede por uma breve temporada” (PAES, 1969, p.13).
Em seus últimos dias de vida — em 558 a.C., aos 80 anos, de volta a Atenas —, Sólon assistiu à derrocada de sua constituição e ao estabelecimento da ditadura de Pisístrato. Tais eventos, em conjunto, significariam a frustração de sua vida e obra política, não fosse o fato de esse ditador ter, paulatinamente, adotado a visão civilizatória de seu antecessor. As manobras políticas de Pisístrato revigoraram diversas reformas promovidas por Sólon, preservando-as na política e na história de Atenas.
🔍 Leiam também a postagem Fator Sólon.
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Constituição de Atenas. — Tradução e notas Edson Bini. Coleção “Clássicos Edipro”. São Paulo: Edipro, 2012.
ARNAOUTOGLOU, Ilias. Leis da Grécia antiga. — Tradução Ordep Trindade Serra e Rosiléa Pizarro Carnelós. São Paulo: Odysseus, 2003.
DURANT, Will. Nossa herança clássica. 3.ed. Rio de Janeiro (RJ): Record, 1995.
EVERITT, Anthony. A ascensão de Atenas: a história da maior civilização do mundo. São Paulo: Crítica, 2019. [Edição eletrônica.]
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as instituições da Grécia e de Roma. — Tradução Roberto Leal Ferreira. Coleção “A obra-prima de cada autor”. São Paulo: Martin Claret, 2009.
HESÍODO. História. — Coleção “Clássicos da literatura universal. São Paulo: Montecristo, 2012. [Edição eletrônica.]
PAES, José Paulo (org.). Grandes cartas da história. São Paulo: Cultrix, 1969.