As eleições têm sido tema de debates inflamados neste final de ano, especialmente em razão das denúncias de fraude nos Estados Unidos. As incertezas e desconfianças quanto ao pleito norte-americano estenderam-se ao Brasil, onde as urnas eletrônicas voltaram a ser questionadas. Aqui, infelizmente, as discussões vêm sendo escamoteadas pela imprensa e atenuadas pelas ameças de investigação. Afinal, para os ministros do STF (conforme se verifica de seus atos e omissões), não há atitude mais antidemocrática do que desconfiar do funcionamento de máquinas de votação e de softwares de apuração criados na Venezuela.
Neste contexto, há até um declarado iluminista a direcionar poderosos feixes de luz ao problema, com o intuito de ofuscar não só as vulnerabilidades do processo eleitoral brasileiro, mas também a própria incompetência.
Não obstante, existem ainda, no meio jurídico, pessoas com coragem e inteligência para enquadrar o problema e, sem abrir mão dos preceitos jurídicos — nem de seu linguajar técnico pertinente —, demonstrar imprecisões, refutar falácias e propor soluções. É o caso do Procurador Felipe Gimenez, da Procuradoria-Geral do Estado de Mato Grosso, que há anos defende a materialidade do voto. Suas declarações e posicionamentos são elucidativos e permitem destrinchar a linguagem jurídica da área eleitoral.
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Procurador Felipe Gimenez, da Procuradoria-Geral do Estado do Mato Grosso, atua na área eleitoral e defende a materialidade do voto. Segundo ele, “o sistema puramente eletrônico não impede a fraude; ele impede a fiscalização”. |
Em entrevista a Max Cardoso, no Boletim da Noite do Terça Livre, em 25 de novembro de 2020, o procurador explicou o significado da palavra “sufrágio”, mostrando que o uso da urna eletrônica no Brasil viola a cláusula pétrea do voto direto. Também demonstrou a “distorção hermenêutica” feita pelo STF para respaldar o uso da urna. Nesse contexto, fica claro que o direito do povo brasileiro foi vilipendiado, pois o ato de participar do sufrágio foi substituído por um pulso eletromagnético que não deixa rastro e, portanto, não pode ser submetido ao escrutínio público.
Sufrágio universal e escrutínio público
O procurador explica que o voto é um ato no qual o cidadão indica os representantes e líderes de sua preferência. Nas democracias, a escolha concretiza-se por meio de uma deliberação submetida ao escrutínio público, ou seja, o sufrágio. Portanto, o voto é apenas uma ferramenta do sufrágio, cujo escrutínio abrange as seguintes etapas:
- 1° conhecimento – identificação do voto quanto à sua natureza, legitimidade, conteúdo e destinatários;
- 2° destinação – atribuição do voto em favor de um destinatário (candidato específico e legendas);
- 3° computação – contagem propriamente dita (apuração).
Vê-se que o escrutínio público é procedimento inerente ao sufrágio universal, uma vez que por meio dele se dá a conhecer ao povo o resultado da manifestação da vontade da coletividade de votantes. Ao contrário do pulso eletromagnético, que é imaterial, o voto em papel constitui prova física do ato do eleitor e, assim, permite detectar eventuais fraudes. Portanto, é uma falácia associar a cédula eleitoral em si à ocorrência de fraudes. O procurador é taxativo ao afirmar que: “o sistema puramente eletrônico não impede a fraude; ele impede a fiscalização”.
A urna eletrônica tira do eleitor a posição de agente do voto (sua causa eficiente), transferindo-a para o software. É o programa que inclui o dado no repositório da máquina, mas sem garantias de que corresponda à escolha do eleitor. Por analogia ao voto em papel, é como se o eleitor marcasse sua opção, mas delegasse a outra pessoa a tarefa de depositar a cédula na urna e ainda fora de seu campo de visão.
Na medida em que o eleitor deixa de concretizar o ato de votar, o software passa a ser a causa eficiente do voto, o que vulnera a cláusula pétrea da inviolabilidade do voto direto.
Voto secreto
O procurador esclarece haver uma impropriedade na expressão “voto secreto”, que consta do artigo 46 do Código Eleitoral:
Art. 46. O sufrágio é universal e direto; o voto, obrigatório e secreto.
Nesse ínterim, ele explica que, se o voto fosse secreto, a ninguém seria dado conhecer o seu conteúdo, tornando inútil todo o processo eleitoral. Na verdade, o exercício do voto é secreto, resguardando-se do conhecimento público a opção individual do eleitor, a qual será computada na fase de escrutínio.
Não é sem razão que o artigo 54 do Código Eleitoral descreve as seguintes salvaguardas:
Art. 54. O sigilo do voto é assegurado mediante as seguintes providências;
1 – uso de sobrecartas oficiais uniformes, opacas e rubricadas pelo presidente da mesa receptora à medida que forem entregues aos eleitores;
2 – isolamento do eleitor em gabinete indevassável para o só efeito de introduzir a cédula de sua escolha na sobrecarta e, em seguida, fechá-la;
3 – verificação de autenticidade da sobrecarta à vista da rubrica;
4 – emprêgo de urna que assegure a inviolabilidade do sufrágio e seja suficientemente ampla para que se não acumulem as sobrecartas na ordem em que forem introduzidas.
Princípio do não-retrocesso
A defesa veemente da utilização da urna eletrônica pelos ministros STF fundamentou-se no princípio do não-retrocesso. O procurador entende que esse fundamento é falacioso, pois implica a construção de uma falsa analogia, senão uma verdadeira distorção hermenêutica. Analogias só podem ser construídas entre elementos que tenham identidade na essência, o que não se verifica entre direito e tecnologia.
O princípio do não-retrocesso refere-se à ordem legal, de modo que direitos conquistados não podem ser retirados. O procurador exemplifica a aplicação desse princípio com a questão da escravidão. Ele diz:
O princípio do não retrocesso é um princípio jurídico e ele diz respeito à escala de direitos que se conquista na evolução da democracia e da cidadania. Nós somos um povo que já teve a escravidão e nós olhávamos para outro ser humano como se fosse uma ferramenta de trabalho. Nós evoluímos na nossa civilidade e passamos a reconhecer esse outro ser humano como outro cidadão. Evoluímos na escala de evolução de civilidade e democracia e de cidadania, nós evoluímos. Muito depois nós reconhecemos que a mulher também tem direitos políticos. Evoluímos.
Então há uma evolução na civilidade e na democracia. E o princípio do não retrocesso significa isso: uma ação do agente público, seja ele do legislativo, executivo ou judiciário, não pode implicar no retrocesso que seria a perda desses direitos. Não poderia, por exemplo, o Poder Legislativo restabelecer a escravidão. Isso seria retrocesso. Eu estou aqui ilustrando. Veja que o objeto dessa análise do que é avanço e do que é retrocesso diz respeito à evolução em termos de direito. E o STF faz a falsa analogia, porque ele compara a tecnologia da eletrônica da urna com a tecnologia do papel e diz: “olha, a urna é mais evoluída que o papel; e sair da urna para o papel é um regredir. Isso viola o princípio do não retrocesso”. A falsa analogia está em comparar a escala de direitos com a escala de evolução tecnológica. Isso, eu não sei, é má-fé ou ignorância, porque só se faz analogia quando os seres são análogos, quando eles guardam alguma identidade na essência.
O procurador entende que o clamor pela impressão do voto na urna eletrônica é inadequado, afirmando que os cidadãos deveriam exigir o escrutínio público dos votos. Quanto à proposta de uma lei sobre o voto impresso, ele comenta:
Há um problema muito sério do uso que fazem também do princípio do não-retrocesso. Também é uma falsa analogia. E a prova física do voto para garantir o escrutínio público e nós para vencermos essa guerra cultural, a gente precisa usar a terminologia adequada e exigir as coisas de forma correta. Essa é uma preocupação que eu tenho com a PEC da Bia, a 153, porque ela está repetindo o artigo do texto do artigo 59-A, que foi julgado inconstitucional e a constitucionalidade não é simplesmente o locus, o lugar onde está a regra. A constitucionalidade é uma harmonia principiológica, então pode haver inconstitucionalidade dentro do corpo da constituição (…)
E a gente sabe que a diversidade que temos está lá no STF, no uso de uma hermenêutica pós-positivista que despreza a ordem jurídica (…)
Ocorre que os ministros do STF aplicam o princípio do não-retrocesso à tecnologia de votação, e não de um direito em si. O voto é uma ferramenta do sufrágio; a urna eletrônica (ou o papel) é uma tecnologia para registro do voto, de forma que a questão de direito estará preservada (sem retrocesso algum), mesmo que sejam utilizadas diferentes tecnologias.
Além disso, o procurador refuta a ideia de que, para fins de eleições democráticas, o papel possa ser visto com um retrocesso em comparação ao meio eletrônico, sendo mais adequada a tecnologia que permita o registro do voto e seu posterior escrutínio.
Para o procurador, a lisura do processo eleitoral somente será assegurada se houver escrutínio público dos votos. O retrocesso, segundo ele, ocorreu em 1996, quando a urna eletrônica substituiu o voto em papel, ocasião em que o pulso eletrônico tornou invisível — e talvez dispensável — a manifestação de vontade do eleitor. Assim, ao lutar pelo voto em papel, o eleitor estará tentando recuperar um direito que de fato lhe foi subtraído pela burocracia.
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REFERÊNCIAS
GIMENEZ, Felipe. Urna virtual: a roupa nova do rei. In: Revista Terça Livre. n. 71. (edição eletrônica).