Resenha: A retomada do Complexo do Alemão

A cidade do Rio de Janeiro encerrou a primeira década do século XXI encurralada pela violência: de um lado ações promovidas pelo crime organizado e de outro reações policiais contundentes e corajosas cujo maior símbolo foi a instauração das unidades de polícia pacificadora (UPP) nas favelas, em um modelo de enfrentamento que não se revelaria eficaz. Em novembro de 2010, ocorreu uma operação policial memorável destinada a combater os traficantes de droga que dominavam o Complexo da Vila Cruzeiro e que se estendeu para o Complexo do Alemão, que abrange diversas favelas na zona norte da “Cidade Maravilhosa”. O Comando Vermelho era a organização criminosa dominante ali.

Naquela época, os complexos da Vila Cruzeiro e do Alemão eram considerados o “quartel general” do Comando Vermelho, onde, frequentemente, se reuniam os traficantes para deliberarem sobre toda a sorte de crimes, como sequestros, atentados a ônibus, homicídios, extorsões, além dos chamados “bondes”, em que os traficantes saíam em comboios de carros, principalmente durantes as madrugadas, praticando roubos. Enfim, se a criminalidade pudesse ser comparada a um furacão, aquele seria seu olho, ou seja, o seu ponto central. 

Era um momento em que o povo carioca havia deixado sua alegria de lado. Os traficantes estavam impondo sua política de terror e a cidade estava em pânico. Algo precisava ser feito, com a maior urgência possível. (…). (p.18)

Existe uma obra não ficcional que dá testemunho desse acontecimento. Trata-se de “A retomada do Complexo do Alemão”, escrita por três autores que relatam sua participação nessa famosa operação, oferecendo também aos leitores vislumbres do cotidiano de enfrentamento à criminalidade e algumas críticas à realidade específica do Rio de Janeiro. São eles:

  • André Monteiropolicial militar lotado no Batalhão de Operações Policiais (Bope);
  • Eduardo Maia Betini — agente da Polícia Federal; e
  • Rogério Greco — Procurador de Justiça de Minas Gerais aposentado.
Os autores (da esquerda para direita) Rogério Greco, André Monteiro e Eduardo Betini.


Os três autores revezam-se na autoria dos capítulos, os quais são organizados de modo a apresentar uma narrativa cronológica dos eventos. Assim, o enredo começa no dia 24 de novembro de 2010, quando o Bope foi acionado para dar apoio a outro batalhão da Polícia Militar que fazia incursões no Complexo da Maré. Uma das oito equipes empenhadas foi comandada pelo então Sargento André Monteiro.

O BOPE não era um batalhão convencional, nem os nossos dias de trabalho. Quando o BOPE era acionado, alguma coisa de muito grave havia acontecido e seria necessária a presença de policiais especialmente  treinados para situações excepcionais. (p. 14)

Eduardo Betini narra, no capítulo 2, sua disposição para participar da operação, mesmo sendo integrante da Polícia Federal e estando lotado na Coordenação de Aviação Operacional (CAOP), em Brasília (DF). 

(…) O Secretário de Segurança do Rio de Janeiro, um policial federal, pediu apoio das Forças Armadas, no que foi prontamente atendido pelos seus representantes. As ações deveriam continuar e a próxima área a ser tomada seria o Complexo do Alemão. O Estado não poderia recuar e a ofensiva deveria acontecer o quanto antes. Gelei! Finalmente, aconteceria a “Batalha do Alemão”, a pacificação final daquele local e sua devolução para as pessoas de bem. O Superintendente da Polícia Federal do Rio de Janeiro anunciou o apoio às ações. Fiquei aliviado:
— Até que enfim, entramos no circuito ! — desabafei.
(…) Tive três horas para dormir, mas não consegui pregar os olhos. Eu só pensava em ir para o Rio de Janeiro, eu precisava participar daquele acontecimento histórico, eu precisava contribuir de alguma maneira naquele processo. (p. 44-45)

Além de ser amigo de Monteiro, Betini havia feito treinamento no Bope, o que o qualificava formalmente para integrar a linha de frente da operação. Nos capítulos de sua autoria, ao narrar as operações policiais de que participou, é minucioso quanto às regras de procedimento. Para tanto, rememora episódios de seu treinamento como “caveira”.

No capitulo 3, Rogério Greco relata seu histórico de relacionamento com o Bope, que inclui a condição de professor (instruindo os policiais sobre questões de direito relativas às incursões) e de aluno (aprendendo a manusear armamento de combate). Grego declara-se um admirador do trabalho policial, com energia e entusiasmo para buscar compreender aspectos diversos dessa esfera de atuação.

Para que eu pudesse entender bem o processo de pacificação e, assim, ministrar corretamente instruções para a tropa, a pedido do Ten.-Cel. René visitei algumas comunidades pacificadas. Infelizmente, pude perceber nitidamente a ausência do Estado em muitas delas. Pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, em situações terríveis. Esgoto escorrendo a céu aberto, lixo por toda parte, ausência de escola, postos de saúde, enfim, lugares onde a população é, literalmente, esquecida. (p.51-52)

Amizade entre os três profissionais e a vocação deles para a segurança pública são fatores que dão consistência à obra, tornando-a relevante como testemunho de um acontecimento que despertou debates acalorados em todos os cantos do Brasil. A criminalidade no Rio de Janeiro foi exposta de maneira franca: emissoras de televisão e jornais impressos mostraram a precariedade das vielas e a vulnerabilidade dos moradores em meio aos tiroteios e aos avanços dos blindados da Marinha. Tornaram-se memoráveis (porque chocantes) as imagens de criminosos atravessando um descampado para  alcançar a favela vizinha, onde poderiam esconder-se. Aliás, um dos debates mais fervorosos cingia-se à inércia das forças policiais diante da possibilidade de abater grande número de bandidos armados em fuga.

Como se vê, nessa obra não há personagens nem cenário; há pessoas trabalhando em um ambiente hostil, com o intuito fazer valer a lei e a ordem, mesmo com risco de morte.

Monteiro, Betini e os outros policiais citados neste livro não são personagens de ficção. São pessoas de carne e osso, que expuseram e ainda expõem suas vidas, para que tenhamos a tão sonhada paz social. Saíram da missão no Complexo do Alemão e já foram designados para outras. O crime não para e nós precisamos de policiais como eles. (p. 330)

Ao longo dos 26 capítulos do livro, a vulnerabilidade do policial contrasta com sua coragem. Patrulhando vielas, eles estão sujeitos a tiros de fuzil e a explosão de granadas; dentro dos blindados, eles resistem ao calor e ao desconforto; em frente a desconhecidos, eles precisam descobrir, com a agilidade e inteligência, se as pessoas são moradores inofensivos ou criminosos disfarçados. Predomina a ação e apenas no último capítulo, intitulado “Corruptos e genocidas”, o professor Rogério Grego disserta brevemente sobre questões de ordem política que favoreceriam a disseminação da criminalidade no País, dando destaque à corrupção.

É importante ter em mente que a obra foi produzida no momento em que a operação Lava Jato começava a revelar um esquema de corrupção mais sofisticado do que o Mensalão (à página 329, Greco declara que o texto foi finalizado em 2013). Nessa época, o “projeto criminoso de poder” de Lula e seus asseclas tornou-se público e notório, pondo em destaque a atuação do então Juiz Sérgio, da Polícia Federal e do Ministério Público Federal. 

Fora essa referência à Justiça, chama a atenção que, inobstante a obra relate a integração das forças de segurança nacionais, não haja menção positiva à atuação do Poder Judiciário.

No capítulo 25, intitulado “E depois do Alemão…”, Greco apresenta a seguinte reflexão:

(…) As estatísticas criminais demonstram que o número de pessoas efetivamente processadas e condenadas por crimes contra a administração pública, como de corrupção passiva, concussão, prevaricação, peculato etc., é irrisório.
Assim, nos perguntamos: onde está a Justiça nesses casos? Será que somente o tráfico de drogas nos preocupa? Quem financia o tráfico de drogas? Será que esses traficantes, que levam suas vidas nessas comunidades carentes, possuem capacidade para administrar valores tão altos? Obviamente, sabemos que os traficantes dos morros são, somente, a ponta do iceberg. (p.329)

Portanto, as relações entre os traficantes nos morros e o narcotráfico internacional não passaram despercebidas ao autor. Hoje são conhecidas formas diversas de cumplicidade e de conflito entre os “comandos” nacionais e o crime organizado internacional como as Forças Revolucionárias Colombianas (Farc), bem como sua articulação com partidos políticos e até com autoridades dos chamados “narcoestados”. Olavo de Carvalho, durante anos, denunciou a tenebrosa promiscuidade entre políticos revolucionários e traficantes via Foro de São Paulo. Em artigo publicado no Diário do Comércio, em 16 de outubro de 2009, o professor já explicava:

No Brasil, a íntima colaboração entre a esquerda revolucionária e o banditismo, da qual já se viam amostras esporádicas desde os anos 1930, começou a existir de forma mais organizada durante o regime militar, quando os terroristas adestrados em Cuba, na Correia do Norte e na China passaram a transmitir seus conhecimentos de estratégia e tática de guerrilha urbana aos delinquentes comuns com os quais compartilhavam o espaço no Presídio da Ilha Grande, no Rio de Janeiro. Foi daí que nasceram as organizações criminosos, o Comando Vermelho e depois o PCC. A esperança que inspirou a sua fundação não foi decepcionada. Em poucos anos, o guro do narcotráfico carioca, William Lima da Siva, o “Professor”, já podia se gabar de haver superado seus mestres:
(…)
Mais tarde, os terroristas subiram na vida, tornaram-se deputados, senadores, desembargadores, ministros de Estado, tendo de afastar-se de seus antigos companheiros de presídio. Estes não ficaram, porém, desprovidos de instrutores capacitados. A criação do Foro de São Paulo, iniciativa daqueles terroristas aposentados, facilitou os contatos entre agentes das Farc e as quadrilhas de narcotraficantes brasileiros — especialmente do PCC —, dos quais loso se tornaram mentores, estrategistas e sócios. 

Nesse contexto, é de se crer que, se houvesse atualização da obra, os autores inseririam menções explicitamente negativas ao Poder Judiciário brasileiro, especialmente na pessoa do Ministro Edson Fachin, que sistematicamente vem dificultando a atuação da polícia no Rio de Janeiro, com medidas como impedir realização de operações policiais nos morros e até restringir o uso de helicópteros.


Imagens compiladas de notícias publicadas no Renova Mídia:https://renovamidia.com.br/.

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  REFERÊNCIAS                                                                                         
CARVALHO,  Olavo de. Primores da ternura 2. In  CARVALHO,  Olavo de. O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota. 30. ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2018, p. 527.

GRECO, Rogério; MONTEIRO, Andre; BETINI, Eduardo Maia. A retomada do Complexo do Alemão. 2. Ed. Revista e ampliada. Niterói RJ: Editora Impetus, 2018.